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MEU CARO AMIGO

Carta ao editor de A Província da Bahia, sobre o atraso no envio do artigo para a edição anterior. Publicado na coluna Abridor de latas, no número 10 do mesmo jornal, em 5 de junho de 2000.

Cenário de Marcio Meirelles para o espetáculo SUPERNOVA

Cenário de Marcio Meirelles para o espetáculo SUPERNOVA

 

Fernando, meu caro amigo,

Desculpe o atraso com que te mando esta coluna, deveria ter saído no número anterior, deveria ter chegado pelo menos há uma semana atrás em suas mãos, ou ao seu e-mail. Já não sei se há mais tempo de sair neste número. E eu queria estar sempre nesta Província da Bahia. Aliás é onde escolhi estar.

Mas você sabe, esgotaram-se os 10 milhões do Fazcultura. Isso nos trouxe problemas aqui para o Vila Velha. Estávamos com patrocinador assegurado para o projeto com os portugueses e de repente não estávamos mais.

O projeto com os portugueses é o seguinte: o Teatro Vila Velha fez um convênio com o Teatro Nacional São João, do Porto, para montar um espetáculo que surgiu a partir de uma idéia da carta de Pero Vaz de Caminha ao rei anunciando a boa nova do achamento de terras do lado de cá do Atlântico. A carta que o cara escreveu é na verdade um poema apaixonado pela descoberta do outro. O deslumbramento. E o que se pode supor seria a continuidade da relação entre estas duas culturas, que se encontram e celebram esse encontro com aquele poema arrebatado, não se cumpriu. A História nos conta outra história.

Pois é, desse ponto de partida se criou um espetáculo chamado Supernova, com texto escrito pelo português Abel Neves e encenado pelo também português Fernando Mora Ramos com atores brasileiros e lusitanos, espetáculo esse que está a caminho de uma turnê por Portugal neste momento.

Então, voltando: este projeto tinha patrocinador e tudo e eis que senão quando, de repente, não mais que de repente, fez-se do patrocínio perto o distante… E nós a ver navios quase a naufragar. Mas se queremos, faz-se e estamos arranjando meios de fazer. Mas descobrir meios é como descobrir novas terras, custa tempo e engenho. Engenho não nos falta, exemplos abundam na trajetória do Vila Velha, mas tempo é só um para tudo e passa e nos ocupamos de uma ou de outra coisa, e quando tudo é prioridade, quase explodimos e alguma coisa tem de esperar. Às vezes o prazer. Como o de construir este abridor de latas.

Mas tudo isto com os portugueses me fez pensar. Hábito saudável este de pensar. Sempre nos leva adiante. Principalmente quando o pensar é seguido do agir. Assim, começamos a discutir política cultural aqui no Vila Velha. Antigo hábito deste teatro. Convocamos muita gente e vamos constatando cada vez mais os perigos e males do neo liberalismo nas novas gerações. Amigo, é como um tufão varrendo toda noção de liberdade, igualdade e fraternidade que acaso tenha resistido e ficado germinando possibilidades em nosso coração. Liberdade agora é livre negociação. É linguagem de mercadoria e de mercado. Não criamos mais, produzimos. E a obra de um artista é produto e não objeto de arte. Chamamos parceiro aos empresários como se os cordeiros pudessem chamar de amigos aos lobos. E tentamos falar sua linguagem para que eles nos entendam. Ao invés de com a nossa sermos necessários. Às vezes me vem a sensação de que a arte não é mais necessária neste mundo. De que já tem muita coisa por aí. Tantos livros já foram escritos, tantas imagens geradas, tantos sons… tantos sons…

Acabou nosso carnaval e o sonho acabou. Mas então “mais que nunca é preciso cantar e acordar a cidade”. É preciso novos sonhos. É preciso construir novas fraternidades. Reconstruir esta noção (e esta nação também). Livrar-nos, Senhor, das garras da mídia que tudo acaçapa e devora e regurgita, transformando o mais terrível acontecimento em banalidade que se esquece em apenas 15 minutos. E Carandirus se sucedem, e genocídios e extermínios e corrupções. E já não se acredita em nada. Apenas em salvar a própria pele – a embalagem. Vamos criando insensibilidades…

Mas estou eu aqui, parecendo um velho a lamentar os novos tempos. São assim. Ou sempre foram e apenas víamos com outros olhos. Sempre ouvi meu avô dizer, “ai, se meu pai visse isso…” querendo dizer que as coisas mudaram muito e o velho senhor Meirelles não concordaria com aquelas mudanças. E é sempre como se cada mudança fosse nos levar ao estágio final da humanidade. Mas sempre damos a volta e conseguimos, conseguimos. O velho senhor Meirelles encararia os fatos, como nós encaramos. E, se como nós não concordasse, só lhe restaria lutar, como nós.

Tudo isso pra lhe dizer que toda primeira terça feira de cada mês estamos discutindo Política Cultural, aqui no Vila Velha, pelo menos para entender porque a galera agora está como está. Por que a verba do Fazcultura se acaba e nós não podemos fazer nada. Porque se gasta tanto nas comemorações do descobrimento e não se prevê nenhum tostão para projetos que propõe repensar este descobrimento e recomeçar relações mais duradouras, que reflitam as diferenças e similitudes e proponham avanços no caminhar da humanidade. Mas avanços que nos levem de volta à humanidade, não nos afaste dela. Não nos deixe à deriva por aí como a Nau Capitânia (imagem recorrente agora em meus mais terríveis pesadelos e constante em minhas reflexões).

PS – Recebi uma carta da comissão dos 500 anos, descartando a hipótese de apoiar financeiramente um outro projeto nosso que envolve portugueses e africanos lusófonos. Um outro projeto de encontros… Na carta, cinicamente, nos davam a chancela, permitindo-nos usar em nosso projeto (agora uma batalha só nossa) o selo dos 500 anos. Mandei enfiar… no fundo do mar.

 

Publicado em 03/02/1997 | nenhum comentário

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