Home - Textos - do autor - artigos na imprensa - INCÔMODA POESIA QUE FEDE A SUOR

INCÔMODA POESIA QUE FEDE A SUOR

Texto de Marcio Meirelles, publicado na coluna Abridor de latas, no jornal A Província da Bahia (Ano I – n. 3), em 3 de fevereiro de 1997.

 

Visitei a exposição de Basquiat em São Paulo. Quando Cheguei em Salvador li uma nota num dos nossos jornais que dizia ser aquela exposição um engodo, uma trapaça dos mídia que nos fez engolir um grafiteiro negro como se fosse artista.

Fiquei chocado. Então, participei de uma farsa e todos os meus sentidos me embromaram? Todo o meu prazer estético e minha razão que precisa cada vez mais de uma identificação política com o que vê e vive, que precisa cada vez mais identificar uma ética clara e correta na ação humana, foi tudo um trampo?

Minha excitação erótica diante da força viril daquela obra, diante daquelas cores chapadas jogadas em minha retina com a violência primal de uma foda foi somente uma perversão polimorfa residual? E as lagrimas, que ameaçaram cair, foram fruto de cristais japoneses colocados pela mídia em meus olhos, como a Globo faz nos de suas estrelas para que elas nos comovam?
Não. Não foi.

A violência de Basquiat é a tradução completa e perfeita de uma vida. É praticada com uma linguagem clara e direta, construída por alguém que tem algo a dizer para alguém que precisa ouvir. Nada é de graça, nada é à toa.

Se ele foi sacralizado, logo sacrificado, pelos mídia, melhor para nós seres humanos deste planeta. Pior para ele? Melhor para ele? Não sei. Não podemos saber. Só podemos ler sua dor e seu humor violentos, seu tesão pela vida penetrando nossos sentidos. E só nos resta dizer yes, man! Em seu dialeto.

Quem diz não, é porque não ouviu ainda a terrível notícia. É que não percebeu ainda como se segrega nossos irmãos. Ou, pior que tudo, ouviu, sabe e concorda ou se cala.

Essa nota me lembrou muito certas críticas que ouvi, e ainda ouço, feitas agora de forma sutil, truncada, por metáforas, com cuidado: “Os atores do Bando de Teatro Olodum não são atores, eles só vão para o palco falar de suas vidas, só servem para fazer rir”.

É preciso saber porque a poesia que vem da rua, suja de necessidades primárias – como é preciso comer, é preciso viver, é preciso respeito, é preciso trabalho e espaço – incomodam tanto a quem está em casa cercado de anjinhos e cristais. É preciso saber porque essa poesia que fede a suor e porra e líquidos vaginais é negada tanto por quem vive envolto em perfumes, impedidos de sentir o próprio cheiro.

Basquiat sabia porque. E nós também.

 

Publicado em 03/02/1997 | nenhum comentário

Envie um comentário