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SONHO EM CONSTRUÇÃO – CUIDADO

Texto escrito em 1999, sobre a montagem de SONHO DE UMA NOITE DE VERÃO, que estreou no mesmo ano. O processo de montagem era aberto ao público e durante um período foi possível ver a construção do espetáculo. 

vinicius de oliveira oliveira, lázaro ramos e franklin albuquerque fazendo um triplo puck em SONHO DE UMA NOITE DE VERÃO - foto: márcio lima

O Teatro é uma coisa estranha. Não é uma linguagem que resulte num produto que se possa dizer: está pronto. É sempre um processo. E o verdadeiro autor do acontecimento teatral é o ator, é ele que provoca e vive esse processo diariamente.

A arte do ator é uma arte de tecelão, arte de desvendar, unir, separar, provocar desejos. Ele pega os fios urdidos pelo dramaturgo entrelaça em seu próprio corpo, tear mágico, com outros, de outras cores e texturas, que as vezes ele tem de adivinhar, fiados pelo encenador. São-lhe entregues também músicas, sons e movimentos que compositor e coreógrafo vão produzindo ou sugerindo. As vezes esses fios se enredam em roupas difíceis de entrar na trama e em cenários inesperados que transformam o que era plano em escadas e o que era liberdade de gestos em dificuldades de espartilhos e gravatas. E segue o ator seu destino de Penélope a tecer e destecer, porque as coisas mudam de um dia para o outro. Hoje era assim, amanhã o outro ator descobriu novos fios que alteram a trama; o diretor não gostou do tom, da cor, e tudo tem que ser refeito, com os mesmos fios, ou outros recém fabricados sabe-se lá por quê caprichos de Dionísius.

Podemos imaginar também o ator como um operário que levanta muros sólidos e transparentes que só duram o tempo de serem levantados. Ao contrário dos outros que são feitos para sobreviver ao seu autor, acabado o espetáculo, desaparecem. São feitos para uma finalidade dupla e contraditória: conter idéias e libertar fantasia e razão. Aí podemos ver o ator/pedreiro tentando fazer uma massa que tenha a consistência necessária para manter as pedras ligadas, obrigando pedra e massa a se entenderem e juntas fazerem um todo coerente que não desmorone. E os ingredientes e ferramentas para essa construção vem de tantas origens diferentes, passam por tantas aventuras cada um… Cabe ao ator dar unidade a tudo e erguer o muro aos nossos olhos.

Esta tarefa, tão delicada e preciosa, é também estafante e cruel. O ator, senhor absoluto do palco, é seu escravo. Somente por sua arte o teatro ganha concretude, e se torna visível. O próprio ator é, ao mesmo tempo, autor, instrumento e objeto exposto. É tecido e tecelão, muro e pedreiro. Ele tem que estar presente para o teatro existir. E, ao contrário do que se possa imaginar, esse tecido e esse muro não estão prontos e são mostrados – são refeitos a cada dia, ou o que se está vendo não é teatro, ou pelo menos não um teatro vivo, bom. É, se muito for, um teatro em decomposição.

Isso porque o público também fia e fornece novos e insuspeitados fios a cada dia, com sua simples presença nas sombras da platéia. Aparentemente passivo, o público é um animal feroz, uma fera móvel, fluida, mutante que a cada dia mostra os dentes afiados. Esfinge, olha o ator no palco e silenciosamente grita com voz nova a cada dia: “decifra-me ou devoro-te. Seduza-me ou não volto para continuar este jogo”. E a ciência para desvendar o segredo da esfinge está em saber usar os fios que ela segura em suas garras e tecer a cada dia novos espelhos, onde ela se reflita. A Medusa só é vencida quando se faz com que ela veja a própria imagem.

marcio meirelles

salvador 1999

Publicado em 22/09/1999 | nenhum comentário

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