Home - Textos - do autor - artigos na imprensa - TECIDOS URBANOS

TECIDOS URBANOS

Texto escrito em Salvador, em 2 de junho de 2000, por Marcio Meirelles e publicado na coluna Abridor de latas do jornal Província da Bahia (ano 4, n. 11) em 05 de julho de 2000.

A publicação deste artigo rendeu um convite ao autor para participar do  Fórum do Centro da Cidade, articulado pelo SEBRAE, do qual participavam várias associações e entidades interessadas em revitalizar o Centro Antigo de Salvador. o autor representava o Teatro Vela Velha.

 

como n achei imagens dos painéis de juarez paraíso q foram destruídos pela igreja evangélica, optei por ilustrar este artigo c uma imagem do super jesus criada pelo artista 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Sempre que passo pelo Politeama, automaticamente, como um velho hábito que faz a boca torta, olho de relance para o Cine Art para ver que filme está passando, e sempre, inevitavelmente, vejo as letras presas no painel que anunciaria a nova fita dizerem: ”vende-se este imóvel”. E a última vez que olhei, esta frase me disse muito mais.

Me disse que os tecidos urbanos são como os tecidos que formam o corpo humano, e como eles, envelhecem, se deterioram, criam anomalias, e podem se regenerar. Cabe provavelmente à administração da Cidade fazer um tratamento preventivo para que não seja preciso intervenções cirúrgicas drásticas como o caso Pelourinho.

* * *

Às vezes, geradas por disfunções, anomalias aparecem, como a reprodução desordenada de células – o princípio do câncer. Diante da miséria por exemplo, a cidade cria dois tipos de tumores: um provocado pela sublimação: os shoppings, onde a miséria é proibida – simbolicamente, pela hipótese do consumo desenfreado ou, quando possível, pela sua efetivação; e de fato, pela interdição de qualquer sintoma em sua área (você já foi abordado por algum menino de rua pedindo dinheiro num shopping? Eu já, e os anticorpos/seguranças imediata e eficazmente impediram que aquilo detonasse meu delírio consumista de véspera de Natal).

O advento dos shoppings centers obriga todo o tecido urbano a se reordenar para enfrentar a crise provocada pelo crescimento artificial de um novo tecido dentro de outro. O caso do Iguatemi moveu a cidade para uma direção inesperada e o fluxo de energia desprendido, a atenção dispensada, alterou e enfraqueceu e também modificou a Rua Chile, onde os soteropolitanos faziam o footing, olhavam vitrines, tomavam sorvete, iam ao cinema, paqueravam, faziam compras e tudo que agora fazemos nos shoppings.

A criação do shopping Barra, detonou o tecido onde estava circunscrito. A Barra que lhe deu nome e acolheu, morreu, como futura Ipanema a que aspirava ser. Surgiram prédios luxuosos ao seu redor, mas todo o bairro trava até hoje uma luta ferrenha para manter a aristocrática maneira de viver, também ameaçada pelo Caminho das Árvores, reflexo do Iguatemi e Itaigara e outras síndromes que tais. E o próprio Shopping Barra sofre as consequências de sua existência e do que ela provocou.

O outro tumor, aparentemente mais terrível, é causado pela repressão daquele disturbio de funcionamento da sociedade: a miséria se expressa. Tem seu próprio discurso, e precisa de espaço. Cada vez mais espaço. E invade zonas urbanas. Áreas onde poderia o mercado imobiliário operar, opera a miséria. Com seus dedos descarnados vai cavando e construindo incríveis arquiteturas, texturas próprias, escamações no delicado tecido da Cidade. Ela em vão tenta se proteger dos perigos advindos da proximidade de uma dessas anomalias que a pobreza elabora. Mas já não adianta tentar conter, não adianta extirpar aquele câncer, porque a metástase já é um fato. O câncer, explicam alguns, é uma resposta do corpo às pressões e às pulsões refreadas. É preciso abrir espaços, dar voz à sociedade como um todo, dar voz para que a cidade possa falar e refletir e não somatizar seu mal.

A cultura deveria ser como um termômetro que medisse essa febre, essas disfunções e alertasse os dirigentes e os cidadãos para que pudessem tomar providências preventivas ou saneadoras, conforme o caso. A cultura seria para isso se os agentes – produtores, artistas, pensadores, agitadores – culturais construíssem uma política cultural e a distinguissem de uma política do entretenimento, ou uma política da indústria cultural. Ou ainda se entendessem que um Ministério, uma Secretaria, uma Fundação Cultural Estadual ou Municipal, não servem apenas para repassar recursos para seus projetos mas para fomentar a cultura para que o cidadão tenha voz e expressão e identidade. Que a Polis tenha saúde plena, e que no seu organismo a cultura tenha a função de antena e para raios, de reflexo, para que suas mazelas não sejam encobertas, mas corrigidas.

* * *

O Cine Art era o cinema do meu bairro. Nas tardes de Domingo, eu ia andando do Campo Grande, onde moro, até o Politeama para assistir à matinê. E era bom. Agora não mais. Então a frase “vende-se este imóvel” no lugar do anúncio de um novo filme, me disse, desta última vez em que a encarei: “Cuidado! Área em perigo. Cuidado! Este bairro está em decadência. A Cultura e suas casas perdem terreno, começam a desabar, começam a não fazer sentido mais aqui. Devem se mudar de área. Esses edifícios, construídos para abrigar os objetos produzidos pelas linguagens artísticas, devem mudar de dono. Talvez Igrejas Evangélicas, que crescem vertiginosamente no seio da decadência física, ética e econômica de uma sociedade, ocupem esses prédios. A cultura não tem mais voz aqui. Sua negação é o último grito de alerta para nos advertir de que há algo de podre…”

Pensei então: O Campo Grande é o coração cultural da Cidade. Ali, a expressão das linguagens artísticas, desde o tempo de Edgard Santos, criou um forte complexo com a Reitoria da Ufba, O Teatro Martins Pena, o Teatro Castro Alves, a Sala do Coro, o Teatro do ICBA, o Teatro do ACBEU, o Museu de Arte da Bahia, o Museu Carlos Costa Pinto, o Teatro Vila Velha. E a frase “VENDE-SE ESTE IMÓVEL” ameaça tudo isso, é um alerta desesperado que só os muito insensíveis não percebem. O fechamento do Glauber Rocha e a transformação do Cine Bahia em Igreja Universal já tinham gritado isso, mas preferimos não ouvir.

Isso é objeto de reflexão para o órgão municipal de cultura elaborar uma política cultural. O próprio Campo Grande dá a resposta com o baile que se arma aos sábados no Forte de São Pedro. Toda essa área – o famoso Corredor Cultural – pode e deve se transformar em mais um polo de atividades de cultura e lazer pensado e planejado como tal, estruturado e infraestruturado para a cidade e para os turistas, isto não enfraqueceria o Pelourinho, ampliaria a área. Mas como ficaria o Aeroclube Plaza Show, não é? Como é que a Prefeitura pode se preocupar com isso agora? Ainda não é necessário uma intervenção violenta, um corte no tecido. Ele ainda não está inteiramente degradado para conseguirmos recursos do BID para sua recuperação. Ainda não é necessário o investimento de recursos num projeto Campo Grande Dia e Noite, que mantenha o interesse de turistas e da classe média soteropolitana. Ainda tem pessoas trabalhando contra a devastação urbana – evitável ainda.

Cabe nos unirmos, moradores, comerciantes, proprietários de imóveis, agentes culturais, donos de escolas, cabe a nós sociedade civil tomarmos as rédeas de nosso destino sem esperar que façam por nós. Façamos. Não sei como, mas façamos de uma vez por todas. Façamos para não ficarmos à deriva como a Nau Capitânia, que nos custou – a nós cidadãos e não ao Governo que não tem dinheiro e sim administra o nosso – 3,8 milhões de reais e melhor era que tivesse naufragado como o desejou Popó, o lutador, em ato falho na televisão. Talvez com ela afundasse nossa vergonha de não fazer nada e deixar o barco correr.

* * *

P.S. – E não é que as igrejas já compraram o Cine Art? A penúltima vez que olhei para o letreiro foi na sexta feira. Escrevi este texto no fim de semana. E eis que, hoje, terça feira, quando passei por lá e dei minha olhada costumeira, agora para ver “vende-se este imóvel”, ví: “Deus é Fiel”. Deus é. Quem mais?

P.P.S. – E hoje, um mês depois, os painéis de Juarez Paraíso que iluminavam a entrada dos cinemas foram destruídos a marretas pelos fiéis a Deus. Que Deus é esse que exige a destruição do resultado do poder humano de criar belezas? Esse poder provavelmente é o que nos torna mais divinos.

 

Publicado em 02/06/2011 | nenhum comentário

Envie um comentário