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RELIGAR O TEATRO AO MUNDO

texto do programa de TROILUS E CRÉSSIDA

Em setembro de 1959, seis alunos da primeira turma da Escola de Teatro da Universidade Federal da Bahia, antes da formatura, romperam com a estrutura e saíram da escola. Criaram a primeira companhia profissional baiana – a Teatro dos Novos – e fizeram da Bahia seu palco. Excursionaram por cidades do interior, ocuparam subúrbios e centro de Salvador com suas ações, fizeram residência artística em Ouro Preto, valorizaram as culturas populares, do artesanato ao cordel, criaram políticas culturais que nortearam seus caminhos.

Em 1964, depois de muito trabalho e com a colaboração de toda a cidade – poderes públicos e sociedade civil – inauguraram o Teatro Vila Velha.

50 anos depois era preciso religar as duas instituições, que durante esse tempo seguiram caminhos divergentes, convergentes, paralelos. Com as várias reformas universitárias, a Escola de Teatro virou departamento da Escola de Música e Artes Cênicas, desvirou, passou por diversas gestões de tendências assimétricas, criou artistas e educadores que multiplicaram seu alcance, fez greves e protestos, aderiu a programas e questionou diretores, reitores e ministros, criou graduações e pós e mestrados e doutorados, assumiu a continuidade do Curso Livre – criado pelo Teatro Castro Alves – como programa de extensão, passou pelo tempo e se mantém firme. Uma referência.

O Teatro Vila Velha, mantido todos esses anos pelos Novos, passou por governos e suas políticas culturais, propondo, divergindo, criticando ou colaborando com elas, na medida de suas convicções. Reinventou-se constantemente buscando alternativas e respostas para a sociedade e suas grandes questões. Transformou sua arquitetura para abrigar seu pensamento. Formulou novas questões e colocou em cheque a própria linguagem do teatro muitas vezes. Criou a universidade LIVRE de teatro vila velha, uma confluência dos vários processos formativos que, ao longo dos seus 50 anos, revelaram ao mundo muitos nomes e o alcance de uma política inclusiva. Inovou e também se tornou um centro de referência.

Nestes 50 anos, muitas ações foram feitas em conjunto entre a escola e o Vila mas, institucionalmente, nunca houve um projeto em conjunto. E a hora se fez.

Estava em Portugal montando uma peça e Deolinda Vilhena mandou uma mensagem, um convite para dirigir o espetáculo do XXVIII Curso Livre. Disse sim, porque o convite veio dela. E porque, refleti: neste mundo, é hora de religar.

O Teatro Vila Velha entendeu este momento e abriu suas portas para que os ensaios acontecessem na Sala João Augusto e, sempre que possível, no palco. Ofereceu equipamentos e técnicos e convocou seus artistas para colaborar como também o fizeram os professores da escola. Foram reencontros e novos encontros. Agradeço especialmente ter conhecido Thales Branche, meu parceiro musical, que cumpriu seu tirocínio construindo a musica do espetáculo.

E que peça? Eu queria Shakespeare porque nada como começar com o melhor. Mas eu teria um elenco para Shakespeare? E que Shakespeare? A audição foi uma oficina a partir dos seus muitos personagens, uma aproximação daquele coletivo, mesmo antes de se formar, com o Bardo. Todos ganhamos, mesmo os que não foram selecionados.

Foi uma celebração do teatro e de Shakespeare onde, apesar da tensão e da ansiedade da admissão, não deixamos de ter prazer – muito prazer – em dar vida a tudo aquilo.

Pronto, estava armado um elenco com o qual eu poderia fazer Shakespeare: um grupo harmonioso de pessoas ávidas por teatro que podiam estar juntas durante seis meses (ou mais) numa aventura humana e coletiva de construção de possibilidades.

E optei por TRÓILUS E CRÉSSIDA – uma peça complicada e longa – porque é a que Shakespeare escreveu para ser encenada agora, neste estágio da sociedade humana, neste planeta. Uma peça que ficou uns 300 anos sem ser montada desde sua estreia, provavelmente em 1602. Só no final do século XIX é que ela começou a ser revisitada, como literatura e como material para a cena. E daí pra cá passou a ser encenada cada vez com mais frequência.

Entende-se porque. Além da linguagem fragmentada e contemporânea, a peça nos mostra um painel social e político que define as ações dos personagens e trata de valores, fama, mídia, manipulação, corrupção, espionagem de Estado e da falência do amor numa sociedade degradada e sem princípios. Trata dos intermediários, dos lobbystas, dos que, nas dobras dos lençóis do poder, sobrevivem e contaminam tudo.

Trata da sobrevivência da mulher numa sociedade ainda dominada por uma lógica masculina, numa guerra sem heróis, feita por abutres, onde até o mais honrado cede, onde as negociações entre inimigos devoram a possibilidade de integridade e de felicidade.

Por que montar uma peça como esta com jovens de 18 a 20 e poucos anos em sua maioria? Porque é exatamente nessas vozes e nesses corpos que Shakespeare pode nos alertar, como alertou os ingleses em luta com os espanhóis na sua época: a vitória só é possível quando é de todos e só virá se for criada, e levada em conta, uma nova ordem que preveja o bem comum e a felicidade.

Isso vale também para o teatro. Sua sobrevivência depende da percepção de sua força como ferramenta política de luta contra a manipulação e a inversão de valores. Como os gregos da peça, não estamos sendo derrotados pela força do inimigo, mas pela nossa fraqueza.

Confiei e confio nesses jovens que defendem tão lindamente nosso discurso e o teatro. Eles puderam fazer o Shakespeare que propus. Espero em troca tê-los ajudado, nesse processo, a engendrar ferramentas com as quais poderão fazer o teatro necessário, o teatro que reflita e faça sentido ainda nesta vida. O teatro que tenha força suficiente para construir uma nova ordem neste século XXI. Um teatro que possa se religar ao mundo.  

marcio meirelles

Salvador, 15/12/2013 márcio meirelles

 

Publicado em 25/01/2014 | 2 comentários

2 Comentários

  1. Graziele says:

    Quanto mais ouço, ou leio sobre essa história, mais, me apaixono por ela e pelo teatro Vila Velha!!!

    Sinto-me feliz por fazer parte de tudo isso, especialmente nesse momento em que essas duas instituições tão fortes no teatro baiano são religadas. É um privilégio fazer parte desse momento, desse teatro, desse grupo, com essa coordenação e especialmente, com essa direção, fui uma das escolhidas, e quanta felicidade por isso!!!!
    É esse o teatro que estou descobrindo, e que quero fazer. Esse “teatro que possa se religar ao mundo. ” Obrigada Márcio Meirelles!!!

  2. Thiago Almasy says:

    Eu poderia te dizer um monte de coisas depois de ler esse texto. Mas vou resumir tudo que tenho pra te dizer em apenas uma frase: obrigado por existir! (com exclamação mesmo)

    Eu amo você, e não é da boca pra fora, e acredite: mais uma pessoa nesse mundo deseja o seu bem. Um beijo!

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