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SOMOS TODOS FRANKENSTEIN

resenha de FRANKENSTEIN – projeto da universidade LIVRE de teatro vila velha

Um romance de terror gótico, escrito há quase dois séculos, por uma jovem de apenas 19 anos, em uma época em que as mulheres não tinham voz, quem dirá voz literária, e que continua a inspirar gerações. Você já sabe qual é a história? Acertou se pensou em Frankenstein ou O Moderno Prometeu, da britânica Mary Shelley, que disputa com Drácula o posto de mais pop e emblemático dos monstros. A Universidade Livre do Teatro Vila Velha mergulhou no clássico e o resultado da investigação de possibilidades cênicas pode ser conferido até 21 de fevereiro, às 20h. Como um mantra ou canto das sereias, na mistura do som das alfaias com o coro, o público é conduzido a embarcar em uma expedição, que começa na área externa e percorre o interior do teatro, “eu quero viajar, eu quero ver o mar… Vou encontrar no infinito um novo mar.” A atmosfera é o prelúdio de uma perspectiva multifocal e plural.

Com direção e coordenação de Marcio Meirelles, o processo de construção do espetáculo foi iniciado há quase 1 ano, com colaboração do dramaturgo Hayaldo Copque, da atriz e diretora Chica Carelli e dos diretores Martin Domecq e Bertho Filho. O elenco, que participou da construção do texto, é composto pelos atores da própria Universidade Livre. Essa é a segunda montagem da Trilogia dos Monstros, iniciada por Meirelles em 2012, com o espetáculo Drácula, de Bram Stoker. A montagem ousada e contemporânea, aposta na liberdade de criação e em um corpo coletivo. Os atores se revezam no mesmo personagem, sem destacar uma interpretação em especial. A vontade de renovar a linguagem teatral, e experimentar novas possibilidades narrativas foi a bússola que norteou o projeto. Para fechar a Trilogia, Marcio planeja encenar O Médico e o Monstro, de Robert L. Stevenson e desvendar o monstro que construímos em nós mesmos.

As narrativas em camadas, que se bifurcam e entrecruzam, fazem de cada espectador uma testemunha ocular, de uma tragédia iminente. Cabe a ele decidir que personagem seguir, recolher os fragmentos de interpretação, recortar as cenas e editar, conforme sua própria leitura. A polifonia, aparentemente caótica, tem sintonia com nossa maneira atual de conectar nossos sentidos ao mundo, e é uma alusão à criação do Frankenstein, feito com partes de todos os tipos de pessoas. Como vozes mentais, personagens assombram o jovem inventor, questionam, provocam, e repetem frases, em uma espécie de eco constrangedor. A proposta tira o público da passividade da cadeira, e deixa alerta. Ao mesmo tempo, evidencia que nunca se tem uma visão do todo, que ao assistir ao espetáculo novamente, ele pode escolher outro ângulo. Apesar do jogo de vai e vem, como rios que correm em direções contrárias, a história deságua no mesmo destino, e nos diz, que independente do roteiro escolhido, ele é inevitável.

Desde o início da produção do espetáculo, o grupo apresentou seis experimentos antes de chegar ao resultado final, inspirados em diversos autores e obras, como Indignai-vos, do escritor franco-alemãoStéphane Hessel (1917-2013), Vidas Desperdiçadas, do sociólogo polonês Zygmunt Bauman, eRumo ao Abismo?, do filósofo francês Edgar Morin. A fusão do romance com outros temas comoMacbeth, de Shakespeare, possibilitou uma imersão nas sombrias semelhanças dos personagens e contribuiu para dar a Victor Frankenstein um aspecto gélido, mórbido e sinistro.

Não é por acaso que o subtítulo de Frankenstein é O Moderno Prometeu. Assim como o titã da mitologia grega roubou o fogo dos deuses para entregar aos homens, Victor, entra no território do divino ao subverter as leis da natureza, e recriar um ser a partir de partes de cadáveres. O ato dos dois teve graves consequências, no caso de Frankenstein, a sua ambição desmedida, provocou uma deterioração física e moral, que destruiu tudo ao seu redor. Na tentativa de recriar a vida, como uma peste, ceifou todas as que tocava. Rejeitou sua criatura, por não refletir seu ideal de belo, por não ser sua imagem exterior, e sim, paradoxalmente ser a semelhança da sua atormentada alma. Isolada, julgada, abandonada à própria sorte, a criatura, que depois ficou conhecida popularmente pelo nome do criador, cultiva um ódio corrosivo, fruto do sentimento de não aceitação, se revolta e assassina todas as pessoas que Victor tem afeição.

A intrigante história ilumina a reflexão sobre quem é a verdadeira vítima e quem é realmente o monstro. Quantas pessoas, como um lixo orgânico, são descartadas, em uma sociedade que seleciona o que deve ser visto ou não, dita padrões de beleza e consumo, e suprime as diferenças? É como se a exclusão fosse um destino inevitável, e a pessoa nascesse para o que é, sem ter a chance de ser incorporada ao próprio sistema, que a modela e oprime.

A história expõe essa chaga. É uma grande metáfora sobre os problemas que assolam a humanidade, que não são tão diferentes da época do livro, mas assumiram cores mais fortes. É a miséria, a desumanização, o preconceito, a violência, a ambição atroz, a marginalização, sentimentos que com o progresso ficaram mais velozes e febris. Voltando à mitologia grega, o progresso pode ser comparado à caixa de Pandora, que disseminou muitos males, mas que no fundo existe a esperança, sentimento que nos anima a acreditar, que apesar de todos os prognósticos, um mundo melhor é possível, e cabe unicamente a nós encontrar o caminho.

A peça usa elementos multimídia como suporte narrativo. No embate da criatura versus criador, são projetadas imagens de mazelas e corpos inanimados, que reforçam a atmosfera de caos, desolação e solidão. Nesse momento, o “monstro” expõe pela primeira vez sua natureza humana e as aflições do seu coração. A angústia de não ter ninguém igual a ele, de não saber a origem de suas partes dissonantes. A sua procura por uma identidade desperta compaixão, sentimos identificação com sua busca por aceitação e amor. Ele tem uma dimensão trágica e poética, e na natureza híbrida, carrega um pouco de cada um de nós.

Frankenstein sempre inquieta e comove. Revela que não existe lugar seguro, pois não podemos fugir da nossa natureza. Podemos rumar para as regiões mais remotas do planeta, mas não conseguimos abandonar nossos demônios. Eles fazem parte da nossa essência, são nutridos com nosso cotidiano. Nas palavras do filósofo, Edgar Morin, “só uma metamorfose pode salvar a humanidade, o homem precisa deixar de ser parasitário da sua placenta, a mãe natureza, para emergir como ser maduro e autônomo”.

Livony Borja e Ana Fideles

publicado originalmente em 21/02/2014 no http://www.maisteatro.com/noticia/resenha-mais-teatro-somos-todos-frankenstein

Publicado em 22/02/2014 | nenhum comentário

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