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PRIMEIRO CAPÍTULO DE UM POSSÍVEL LIVRO SOBRE TEATRO

SONIA LEITE em FRANKENSTEIN - foto: marcio meirelles

Sou artista. Tenho 43 anos, 25 de teatro e uma profunda necessidade de dizer coisas. 

Continuo fazendo e querendo o teatro, porque acho que não sei fazer outra coisa. Nós vamos construindo armadilhas pra não deixar de realizar o que queremos, e acho que a vida inteira. O destino é isso: as armadilhas que a gente vai armando pra não sair de um caminho. Fiquei ligado ao teatro formalmente, emocionalmente, socialmente, politicamente. Esta ligação é muito forte. Tudo que eu construí parece não me permitir mais deixar de fazer teatro. Isso é como o destino nas tragédias: aquela coisa da qual não podemos nos livrar e ainda que corramos, fujamos, acabamos esbarrando nela. É da tentativa de fuga que surge a tragédia, porque você não pode se desprender de você mesmo, romper consigo.

Outra coisa muito forte é que o teatro é uma forma de conviver. Engraçado, não vou na casa das pessoas, elas não vêm muito na minha casa,  não tenho uma vida social intensa, e meus maiores amigos, que são quase insubstituíveis afetivamente, estão no mesmo trabalho que o meu, dividindo  não só o meu espaço afetivo, mas também profissional. Então, o teatro é uma forma muito especial de estar com as pessoas, de trocar, de conviver, de construir, de ter e fazer sentido, de estar vivo… Como numa relação amorosa, você não constrói teatro sozinho. Foi assim que eu aprendi, no teatro universitário, quando comecei: era uma coisa de turma, de tribo, na qual o grupo todo tinha as idéias, construía o texto e se dirigia. 

Um estímulo básico para dirigir é se encantar com o ator no palco. Adoro quando vejo como ele é capaz de fazer coisas que não se faz normalmente ou só se faz em limites extremos. Por exemplo, Fernanda Montenegro no espetáculo Lágrimas Amargas de Petra von Kant: em cena, ela dizia eu te amo para a personagem de Renata Sorrah umas dez vezes seguidas, cada uma com uma entonação diferente. Isso era a coisa mais linda da peça inteira. Ali Fernanda mostrava a atriz que tem a possibilidade de dizer eu te amo de 200 formas diferentes na mesma hora, quase como um exercício. Era algo completamente pertinente e humano. Era real, pertencia à trama, ao personagem e também fazia parte da história de Fernanda Montenegro. Isso eu acho lindo: ver o ator exercitando a sua função.

Na verdade, qualquer ser humano tem a possibilidade de representar a verdade, de representar a vida, mas o ator faz isso de uma maneira maior do que a vida é. Sempre falo que existem três estados: a verdade, a mentira e o teatro. Este último é um estado intermediário. Não é falso, é uma outra verdade. Não é fingimento, é teatro. Não podemos dizer que a lágrima de Yumara Rodrigues na peça A Mais Forte seja verdadeira, mas o que ela faz para chorar não é exatamente o que acontece a uma pessoa quando chora. Ela mexe com as mesmas glândulas, provavelmente com a mesma respiração, enfim, todo o processo físico é igual ao de alguém que está chorando. No entanto, o que faz a atriz para chorar não é a mesma coisa, porque aquele choro tem que se repetir a cada dia. A lágrima tem que cair a cada dia na mesma hora, e só o teatro pode fazer isso, estabelecendo, portanto, que esse limite entre o real e o verdadeiro é falso.

Acho lindo quando o ator consegue mostrar esse terceiro estado. É como um filho de santo possuído, que tem a capacidade de fazer uma ligação íntima entre a divindade e o ser humano. O ator é maravilhoso quando consegue mostrar esse lado divino. Deus é esse poder de união, de junção, de criação, de reprodução. E o ator é o cara que tem esse dom. Não se vê esse estado em um pintor ou escritor, mas sim na obra deles. Já o ator é a obra e o autor ao mesmo tempo.

Todo mundo tem um limite. Meu trabalho é empurrar o ator para além do limite dele, propor desafios para que ele chegue o mais longe possível. É um trabalho de relação, ou seja, eu tenho que ver o que o ator quer. Isso foi uma descoberta maravilhosa feita logo que comecei a dirigir. O ator tem razão porque está lá inteiro com o corpo, a voz, a emoção, o suor, o sangue, com tudo. Já o diretor está de fora querendo sempre coisas, e esse querer depende do ator. Não adianta você entortar o desejo dele para chegar ao seu. O importante é acompanhá-lo no desejo dele e equilibrar tudo num desejo único.

Estou querendo dirigir, dirigir, dirigir… Picasso costumava dizer que um artista não pode se considerar artista se não produz pelo menos uma tela e alguns desenhos por dia. Ele era um pintor compulsivo, mas essa frase, de alguma forma, é verdade. Se a gente não está se exercitando, não pode se chamar de artista. Se um ator não está no palco, então não é ator. Assim é o diretor. Eu estava muito envolvido com promoção, agitação cultural, produção, marketing, e não foi à toa que ganhei um prêmio de marketing este ano. É estranho, porque eu estava deixando um pouco de lado essa coisa do diretor e, ao mesmo tempo, fui ficando amargo com o fato de não estar exercitando esse lado meu,  cumprindo a função que eu escolhi.

Criei essa condição de ser diretor do Vila Velha, de ter um teatro à minha disposição. Mas estava tudo louco, embaralhado, se perdendo… Batalhei durante anos para ter um teatro e me exercitar dentro dele como diretor. Consegui tê-lo, porém estava me exercitando como administrador, produtor, captador de recursos, marketeiro, como qualquer outra coisa menos como diretor. Aí disse: Chega! Eu quero ser um diretor. Durante esse período, eu dirigi Esmeralda, a Vampira Fetichista, Barba Azul, Potato Pum, A Mais Forte e Cabaré da RRRRRaça. Foram cinco espetáculos e poéticas completamente diferentes, trabalhados mais ou menos simultaneamente.

Sinto que sou complicado no trato com a teoria. Não consegui me formar, e nunca quis ter uma carreira dentro da Universidade. Acho que sofro de uma certa adolescência renitente, uma rebeldia que não permite me adaptar ao processo acadêmico.

O meu processo de aprendizado foi na prática. Primeiro com o teatro universitário aprendi que o teatro é uma arma política e que é uma coisa que deve ser feita coletivamente e tem a ver com aqui-agora.

Como ator e figurinista independente fui aprendendo com os diretores com quem trabalhei – Jurema Pena, José Wilker, Nelson Pereira dos Santos e B. de Paiva. Eram conceito, modos, coisas que eu queria e não queria fazer, coisas com as quais eu concordava, coisas com as quais não. Fui descobrindo um jeito.

Com o Avelãz y Avestruz experimentei esses jeitos e outros. Aprendi com os atores como são os atores e como é possível dirigi-los. Aprendi em  cada espetáculo um jeito novo. Cada espetáculo do Avelãz foi iluminado por um mestre. Artaud, Brecht, Meyerhold, os cineastas expressionistas alemães, Jung, Lacan, o Kabuki, a commedia dell’arte, o teatro de circo. A cada nova montagem a gente ia se esbarrando com o aliado necessário para nos fazer continuar. Nos metíamos de cabeça nessas experiências estéticas e existenciais e redirecionávamos nosso trabalho. Aprendíamos lendo, viajando, vendo outras coisas, outras pessoas, outros artistas trabalharem. Aprendi a agrupar, a manter junto um grupo de pessoas. A ouvir, a perceber que cada ator tem muito pra dar, é só saber ver e estimular do jeito certo. E esperar. Saber esperar a hora certa em que alguma coisa vai brotar e colher.

Depois foram anos de carreira solo, trabalhando com vários grupos e várias linguagens. Dança, música, vídeo, teatro.

Depois foi a crise com tudo aquilo e a experiência internacional: uma bolsa de aperfeiçoamento em New York. E a desistência da bolsa. Não era o que New York tinha para me dar que me interessava naquele momento. Tudo o que New York tinha para me dizer era : “volte para o Brasil, para a Bahia,  vá descobrir seu próprio teatro, como nós descobrimos o nosso e fazemos bem”. 

Com o Projeto Teatro aprendi a descobrir as raízes de um teatro que me interessava naquele momento, e um jeito de fazer teatro que era necessário, não só pra mim, não só pro meu prazer estético, mas necessário para uma comunidade. 

Daí vieram os anos de porrada, como diretor do Teatro Castro Alves, onde me vi dirigindo um monstro, no ventre do qual se aninhavam um balé e uma orquestra, e em volta a imprensa, os amigos, os inimigos, os políticos e a cidade. Aí aprendi a sobreviver. 

Depois, com o Bando de Teatro Olodum, aprendi outra poética, outra política e outra ética. Aprendi como é a sobrevivência do lado negro de um país que nega ser racista.

No Vila Velha estou aprendendo a ter prazer, a ser inteiramente diretor, a dividir e comandar. A seguir o rumo dos acontecimentos, as vezes somente me deixando levar, as vezes levando. Agora, no Vila Velha, estou aprendendo.

O meu jeito de passar todas essas experiências é mostrando. Ao mesmo tempo em que mostro, faço e repenso o que eu vi, fiz, li, pensei… Mostro tudo: exemplos, citações, discursos meus, de outros… tudo através de um trabalho prático. O meu trabalho.  Nesse sentido, é bacana comandar uma oficina com atores, porque a gente repensa o fazer teatro. A gente reaprende, reinventa. O legal de alguém ser seu aluno é aprender como você faz, não para fazer igual, mas para ver um artista trabalhar e poder ter um parâmetro do que é o trabalho dele. Muito melhor do que ficar passando o que a, b ou c fizeram, é passar como você faz. Você é vivo e o teatro é vivo também. 

No processo de elaboração e estruturação de um espetáculo, meu método é mais ou menos assim: numa improvisação a gente faz uma cena que é legal. Ai segura aquilo, discute o que realmente quer dizer com aquela cena e repete e outra vez no dia seguinte e no outro dia e os atores vão colhendo material na rua, nos jornais, nos livros, na vida e trazendo para o exercício. Novas cenas vão surgindo e sendo repetidas de forma independente uma da outra. Desta repetição vem o amadurecimento de cada seqüência. Os atores vão fixando o que é mais importante, enquanto eu vou interferindo bastante, lembrando coisas que eles não colocaram na repetição e que era importante ter, e dando a direção da cena. “Aquela determinada situação eu escolhi porque fala daquilo, que não pode ser perdido, pois tem humor, tem uma certa informação, tem não sei o quê”, então eu vou sinalizando coisas que eles devem conservar ou então acrescentando. Tipo assim: “aqui, nessa hora, fala isso, puxa isso de outra forma, você podia fazer assim…” Vou provocando ações e reações dentro de uma estrutura que já está lá, e no final eu vou juntando tudo, estruturando, e até mudando a configuração da cena de modo que ela se encaixe no lugar certo. 

Para os atores de Barba Azul, por exemplo, era espantoso como as cenas ficavam na minha memória e como eu ia buscando o casamento delas. Como nesta peça a estrutura era mais poética, eu usei as ações como frases melódicas ou musicais, que eram repetidas por todos. Uma coisa que uma atriz fazia sozinha, eu pedia para todas as mulheres fazerem juntas. Então a cena soava diferente como se tivesse outra estrutura. O que era único virou coletivo. Às vezes era o inverso, o que era feito por muitas pessoas acabava ficando condensada em uma só. 

O personagem é a célula básica para a construção das cenas e ele tem surgido a partir dessa sistemática. Nasce a partir de uma coisa básica, orgânica, que é respirar, estar vivo, pensar e se mover. O ator começa somente a andar e respirar. Prestar atenção à própria respiração e modifica-la, e a partir daí, modificar o ritmo, o andar, a emoção. Essa nova respiração e esse novo andar, novo ritmo, novo sentimento, vão gerando um novo ponto de vista, uma opinião sobre a vida e um estar no mundo que  são próprios daquele personagem.

O ator enquanto anda pela sala vai começando a pensar numa pessoa e colocando uma respiração que é própria daquele alguém imaginado. Vem o andar, o gestual, a forma de caminhar, e uma emoção básica que todo mundo tem. Existe gente que é raivosa, ciumenta, amorosa, delicada, furiosa, amarga, e tudo isso implica em um ritmo e um jeito próprio de respirar. O ator vai descobrindo isso aos poucos e muito a partir da relação com os outros personagem.

Depois de ter a estrutura básica que é uma respiração e um movimento, eu vou perguntando coisas: “o que você faz, como você ganha dinheiro…” Então a gente vai sempre colocando esse dado real, essa coisa da função que esse cara assume no mundo, porque as profissões, os grupos sociais têm funções. Uma baiana de acarajé não serve só para vender acarajé. Ela tem uma função, uma estrutura numa comunidade, preservando coisas e funcionando como um receptáculo de um imaginário coletivo. Essa personagem seria um conceito, não só um indivíduo. Ela traz em si a coletividade das baianas do acarajé. 

É muito importante pra mim que o ator não pense que aquele personagem é real, que ele acredite o tempo inteiro que ele construiu alguém para, através desta construção, colocar seu ponto de vista. A opinião do personagem não é   necessariamente coincidente com a do ator. É melhor até que não seja, mas que, através do personagem, ele coloque a sua indignação diante de alguma coisa ou a sua vontade de que alguma coisa seja daquela forma. Às vezes acontece de alguns personagens serem muito próximos do ator. Isso as vezes se torna uma dificuldade porque o ator pode começar a defender as suas opiniões como pessoa, não deixando que o personagem criado por ele ganhe uma vida própria e tenha sua própria opinião. 

As vezes é o contrário, o ator defende tanto o ponto de vista do personagem e cria justificativas tão convincentes pra ele agir assim ou assado que passa a ser identificado com ele. Durante muito tempo a imprensa confundiu isso em relação aos atores do Bando de Teatro Olodum. Achando que nem eram atores porque não representavam personagens, mostravam sua própria vida. Como se fosse mais fácil mostrar a própria vida do que representar personagens. Os atores do Bando sempre representaram personagens, através dos quais eles podiam falar de coisas que conheciam de perto, não que vivessem aquelas coisas.    Nenhum dos atores do Bando era traficante ou prostituta, mas através deles eles podiam falar de respeito e cidadania, de discriminação e outros itens da cesta básica de um cidadão brasileiro negro e pobre. 

As vezes essa defesa do personagem gera confusões dentro do próprio grupo. Por exemplo: a atriz Edvana Carvalho interpretou, nas peças da trilogia do Pelô, do Bando de Teatro Olodum, uma dessas baianas estilizadas que servem de isca para turistas no Pelourinho, negra e racista, que dizia ser quase branca e queria ir para a Europa se casar com um gringo e se dar bem na vida. Tudo que ela falava era muito canalha, escroto, mas Edvana não é assim. Só que quando a atriz colocava aquelas posições no personagem, ou seja, transformava em teatro, ela tinha que defender tudo aquilo e justificar o personagem. Torná-lo inteiro e oferece-lo ao público para que então fosse feito o julgamento. Edvana fazia isso tão bem que começou a ser discriminada dentro do grupo como se fossem dela as atitudes do personagem.

O ator  não pode expor seu personagem de uma forma que o público já tenha nele próprio o julgamento. Ou seja, ele não pode julgar nem pré-julgar o personagem. Não pode ter preconceito sobre aqueles conceitos, idéias sobre aquela vida que está sendo mostrada em cena, o público é que deve fazer isso. O ator deve colocar tudo de uma maneira crítica, expositiva, mostrando io comportamento, as razões e as contradições do personagem e da comunidade que o gerou com aquele comportamento, aquelas contradições e aquelas razões. Não deve julgar seu personagem nem se envolver ou se emocionar com ele, a ponto de perder o controle sobre o seu próprio senso crítico e sua opinião pessoal.

Depois da ligação do ator com seu personagem, vem outra também muito importante: a desse personagem com os outros. Aí é que de fato eles vão se estruturar. A partir do confronto. As relações é que vão dar o caráter do personagem, sua história, suas posições e também determinar como vai ser a convivência do ator com ele.

As vezes os atores se surpreendem com reações de seus personagens quando confrontados em situações inesperadas. Porque, como princípio e regra da improvisação, o ator tem que assumir tudo o que o outro com quem está contracenando coloca para ele. Se o outro personagem diz “eu te encontrei ontem”, ele tem que assumir que houve o encontro por algum motivo e aí vai criando situações. E muitas vão surgindo assim, até chegar o momento em que tudo que foi improvisado vai ser racionalizado, estruturado e editado para caber no espetáculo. Para dizer exatamente o que se quer dizer.

Dessa forma os personagens são criados coletivamente, são socializados, dependem de todos os atores e do diretor. Vão sendo criados como respostas a provocações dos outros, como conseqüência lógica das ações, das atitudes dos outros personagens. Vão sendo gerados, como na vida real, pela lei da ação/reação. Vão sendo criados personagens sociais e não psicológicos. E, não sendo uma criação individual, conservam características coletivas, pontos de vista coletivos. Mas, ao mesmo tempo, dependem e muito do ator que os está representando, de sua consciência política, de sua visão crítica, de seu senso de observação, de sua intuição, de sua responsabilidade e de sua habilidade em receber as contribuições dos outros atores, incorporá-las e transforma-las em seu próprio discurso.

As vezes um ator poderia fazer um grande discurso com o seu personagem. E esse discurso seria fundamental para que o espetáculo dissesse o que queremos dizer com ele. E falta ao ator essas qualidades, principalmente preparo político. Então tenho que resolver a questão. Ou provoco o grupo para que dê subsídios a ele, ou escrevo seu discurso e tento fazer com que ele o incorpore, ou simplesmente peço a outro ator que assuma com o seu, a função daquele personagem e faça o discurso que necessitamos.

Acho que o ator tem que ser um parceiro. Ele tem que aprontar a parte dele e trazer materiais. Se ele não traz nada, fica difícil dirigi-lo. É como modelar: a argila tem que ter uma certa consistência nem estar muito dura nem muito mole. Se o ator tenta fazer tudo sozinho, ter tudo pronto, não é permeável ou receptivo para o que está acontecendo, na hora em que está acontecendo, temos um personagem rígido, previsível. Se, por outro lado, o ator não traz nada, não dá nada nas improvisações, não troca, ele não atua, é usado. 

Quando falo essas coisas, isso tem a ver com o meu método de trabalho, não que seja melhor, o único ou que deva ser seguido. O teatro é um universo ilimitado de processos para se chegar a um discurso. É como você usar a língua portuguesa para escrever cartas, processos, artigos, bilhetes… A língua teatro pode ser usada para diversos objetivos e com diferentes conteúdos e formas. 

No meio disso tudo, ensaiar torna-se um grande prazer. Na verdade, gosto mais  do que do próprio espetáculo. Adoro assistir ao ensaio dos outros como simples espectador. Gosto muito do processo, da quase peça. É bacana a gente ver a interrupção, o jeito de criar, porque, é como o que falei daquela cena de Fernanda Montenegro, é ver um artista exercitando o seu ofício. Adoro, por exemplo, ver operário trabalhando em obra ou então ficar olhando uma pessoa bordar, um artista pintar… Gosto de ver trabalho, de ver uma parede ser levantada ou demolida, de ver as coisas surgirem. 

Gosto do jogo de armar, de montar, o jogo do que vai acontecer. Muitas vezes são criadas cenas que eu não sei onde serão colocadas, mas tenho uma intuição de que se encaixam em algum lugar e a gente guarda. E espera. Esse tempo de espera para as cenas criarem vida, ficarem sólidas e aí poderem ser associadas e serem encaixadas numa história, isso me dá muito estímulo. 

O espetáculo Cabaré da RRRRRaça, que montei com o Bando de Teatro Olodum, foi um processo completamente novo.  Deixei os atores falando, discutindo, para que eles entendessem e estruturassem essa discussão, arrancando argumentos uns dos outros. Há um momento na peça em que o ator Cristovão da Silva comenta uma cena sobre o cu do mundo. Ali, ele está comentando o próprio teatro e fazendo um relação entre o conteúdo e a forma como o conteúdo foi colocado, justificando o porquê daquela cena ter sido feita daquela forma. Nesse sentido, acho que o Cabaré da RRRRRaça mostrou-se mais radicalmente novo pra gente. 

No exercício de dirigir, sou e não sou paciente. Quando vejo que o ator não consegue mesmo, que ele tenta mas não chega lá, eu desisto. Invento outra coisa e mudo. Agora, quando vejo que o ator pode e não consegue, porque não está tentando ou está com medo ou não quer ser ridículo, aí perco um pouco a paciência e sacaneio mesmo. Mas eu aprendi que o teatro é um jogo, e por isso mesmo tem que ser divertido. Então sempre brinco muito. Quando fico impaciente começo a brincar, a sacanear, mas de uma maneira que fique gostosa, que seja bem humorada. É claro que o ator que está na berlinda perde o humor, não fica muito feliz de estar ali sendo sacaneado, mas as vezes é preciso criar uma provocação para ele sair daquilo. Às vezes é tão clara a capacidade dele de sair de um impasse… mas aí ele empaca e cabe a mim forçá-lo a sair, nem que ele entre em crise, pare, dê um tempo e depois retome de outra forma. 

Meu processo é muito louco. Aconteceu na minha vida o inverso. Todo mundo começa fazendo mil coisas e teatro, nas horas vagas. Eu não. Comecei fazendo teatro integralmente, o dia inteiro, o tempo inteiro pensando naquilo, elaborando aquilo e trabalhando de fato, como artesão, em um único espetáculo. Agora, depois de 25 anos, quando eu deveria estar com a tranqüilidade de montar tal coisa e aí viajar para Paris, onde passaria dois meses pesquisando e tal, acontece o inverso. Estou fazendo milhares de coisas ao mesmo tempo e ensaiando várias peças de uma só vez. Isso dá uma mobilidade, uma dinâmica de pensamento completamente diferente, e é bárbaro também, porque a gente vai ligando uma coisa com outra e vai ligando a vida com o teatro. Quer dizer, a vida lá fora, real, aquilo que está acontecendo na cidade, vai se misturando com a fantasia teatral. Encontro solução para uma cena caminhando de manhã pela rua. Ou então acho em uma peça solução para a outra. Esse grande jogo de armar é bacana, desafiador, mas não é o ideal. Adorei ter feito só Zumbi, quando estava em Londres. Ensaiava o dia inteiro, pensava o espetáculo o dia inteiro, sem divisões,  porém sentia falta um pouco dessa queimação. 

Fico e não fico nervoso numa estréia. Vejo outros diretores estrearem e eu não ficou tenso como eles.  Sei que tudo é um ciclo. Começo a trabalhar com o ator, com o elenco, e o primeiro momento é de provocação para o surgimento do material. Então espero e vejo brotando, brotando. Aí tem um tempo que é duro pra mim e para os atores também, que é o de organizar todo esse material que surgiu espontaneamente, editá-lo, dar polimento e ter controle sobre ele. Às vezes surgem saques maravilhosos que as pessoas adoram, chora todo mundo, aquela coisa, mas aí é preciso ter cuidado de separar isso de um processo terapêutico. Teatro é teatro, terapia é terapia. Nesta arrumação, vamos vendo as palavras que estão erradas, acentuando corretamente, fazendo a pontuação, reestruturando frases, reelaborando pensamentos, ordens… É um trabalho no qual o diretor tem que se distanciar e observar, ouvir sugestões dos atores, das pessoas que vêm assistir aos ensaios, do cenógrafo, do diretor musical, do iluminador, de todos que estão ao redor. Não que os outros estejam certos ou que você deva mudar porque as pessoas preferiam de outra forma, mas é importante discutir idéias.  Mas, chega uma hora que não há mais o que fazer. O complemento de um trabalho depende de uma estreia e do público. É como um filho que está no mundo e vai tomar porrada. Aí ele volta pra casa, pro seu ombro, chora, e a gente vai rever e investigar se é possível reconstruir aquela parte machucada. Por isso eu não fico histérico, nervoso ou me batendo pelas paredes. Sempre planejo de forma que exista no cronograma de montagem de uma peça uma margem para respiração, um espaço para um polimento tranqüilo. Quando não há, é porque não tem mesmo, e aí, paciência…

O teatro é totalmente desprovido de formalidade. É uma anarquia. Tem que ser uma coisa dionisíaca mesmo, de prazer, de delírio, de embriaguez, de fertilidade. É algo que prospera, cresce, aumenta, então tem que ser levado na farra, porque é uma manifestação de turma, e quanto mais turmas puderem trocar informações, melhor. Me agrada o trânsito das diversas tendências. Minha intenção nunca é de formar uma panela de pressão fechada, na qual não entra e não sai ninguém. Agora tem o momento de impor uma autoridade. E aí é assim: “eu sou o diretor e prefiro que você, enquanto ator, faça meu erro e não o seu acerto. E ponto final”. Discute-se tudo conceitualmente, mas existe um respeito a esta autoridade, que é construído durante todo o período de ensaio, porque senão a coisa não anda. Tem que ser construída uma confiança. Em Barba Azul, por exemplo, houve uma briga por causa do figurino das atrizes. Umas queriam a blusa com alça, por causa do busto e do colo. Outras queriam sem alça, porque achavam que  o busto e o colo tinham mais é que ser mostrados. O impasse era por uma mera questão de vaidade. Ficaria bonito das duas formas, embora eu achasse melhor com alça. E nesta discussão eu tive que interferir e falar: quero assim, porque o figurino é meu e pronto, chega.

Nessa história toda de dirigir, é engraçado como eu, nesses 25 anos, não desenvolvi um estilo único. Há, sim, dentro da minha obra, coisas que reaparecem. Adoro botar atriz com peito de fora. É uma marca que está sempre aparecendo em meus espetáculos. Não gosto de entra e sai de atores durante uma determinada peça. Lugar de ator é no palco e não no camarim. Existe o estilo do Bando; a linha visual do meu antigo grupo Avelãs & Avestruz, que foi retomada em Barba Azul; ou ainda o estilo mais discreto presente no espetáculo A Mais Forte, que é muito parecido com a minha discreta assinatura na direção do show Feijão com Arroz, de Daniela Mercury. Nestes dois últimos, minha intenção foi de deixar aquilo acontecer inteiro sem que eu aparecesse muito. Mas havia também um estilo, um jeito ali que era meu. Sinto, portanto, que tenho diferentes estilos.

o primeiro capítulo de um livro q ainda pretendo escrever – reflexões sobre meu trabalho em teatro, escrito a partir de uma série de entrevistas concedidas ao jornalista marcos uzel

salvador, 1997

Publicado em 24/03/2014 | 2 comentários

2 Comentários

  1. Manu Moraes says:

    Engraçado, me deparei com este texto recém-chegada de uma peça, exausta, feliz e pensando que quanto mais me reaproximo do teatro, mas difícil está/será fazer outras coisas. Lê-lo foi como uma confirmação…

  2. Mariana Freire says:

    Muito bom ler sobre todo este processo criativo e ter feito parte dele!!!

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