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artes cênicas: QUEM É O INIMIGO, DE FATO?

foto: marcio meirelles

 

JOYCE ATHIÊ

Parecia haver uma sinergia ou até mesmo uma premonição quando o espetáculo “O Campo de Batalha” estreou no início do ano, trazendo a temática da crise hídrica. Premonição maior se concretizou ou tornou mais visível com as últimas manifestações vividas no Brasil, com expressões de ódio e intolerância presente nas ruas e, mais especificamente, nas redes sociais.
Dirigido por Márcio Meirelles, criador do Bando de Teatro do Olodum e diretor do Teatro Villa Velha, ambos de Salvador, o espetáculo cria uma espécie de ficção quase científica para apontar para uma polaridade criada pelo dramaturgo baiano, e também ator do espetáculo, Aldri Anunciação. Com codireção de Lázaro Ramos e Fernando Philbert, “O Campo de Batalha” pode ser visto no Centro Cultural Banco do Brasil, a partir de amanhã, às 20h.

A peça marca um reencontro de artistas já entrelaçados na trajetória profissional. Márcio Meirelles foi o primeiro diretor de Lázaro Ramos, que teve no Teatro Villa Velha seu berço teatral. Lázaro também já havia trabalhado com Aldri na direção de “Namíbia, Não!”. O gaúcho Fernando Philbert e o ator carioca Rodrigo dos Santos integram o time como “um encontro de cabeças que se reconhecem na lida diária com o teatro”, como afirma Márcio.

Autor estreante com “Namíbia, não!”, peça vencedora do Prêmio Braskem (2011) e do Prêmio Jabuti de Literatura (2013), Aldri segue em seu segundo trabalho na aposta de uma estrutura dramatúrgica que ele denomina “espetáculo debate”. No palco, ele coloca dois personagens, com pensamentos antagônicos e dá a eles condições iguais de argumentação. Como uma tribuna, a reflexão se dá no confronto. No caso de “O Campo de Batalha”, na linha do front.

O espetáculo narra o encontro de dois soldados inimigos que estão em plena Terceira Guerra Mundial, ocasionada por conta da disputa pelas águas do planeta. O embate é subitamente interrompido devido a uma crise no processo de produção de munição, e os soldados são proibidos de guerrear até que a situação se normalize. Nesse hiato, os inimigos se aproximam. Da convivência, acabam descobrindo e revelando as verdadeiras razões do conflito. “A peça se passa em uma inação, onde soldados preparados para lutar não podem atacar o inimigo. Com o vazio da ação, resta a eles o encontro com o outro. Eles acabam tendo que se dissecar mutuamente e tentam outras formas de vivência e embate”, conta Aldri.

A voz do sistema, do aparato que determina a hora de lutar ou não, vem de um autofalante que monitora os soldados para que eles não se tornem amigos. Gravada pela atriz Fernanda Torres, essa voz faz intervenções ao longo do espetáculo, influenciando a relação que se estabelece entre os soldados.

Em “Namíbia, Não!”, também dois personagens com ideias antagônicas se digladiavam em argumentos ligados ao racismo. Em “O Campo de Batalha”, os conflitos humanos e as polaridades criam a temática implícita do espetáculo que pouco fala sobre a guerra. “Falamos das relações e das divergências. Somos mesmo inimigos ou estamos dentro de um sistema que polariza o Oriente do Ocidente, o Sul do Norte, a direita da esquerda?”, argumenta Aldri.
Márcio Meirelles diz ter despertado o interesse pelo tema desde a primeira leitura, sendo, para ele, a questão da água apenas uma fagulha. “Sem dúvida de que esse debate é muito atual e necessário, mas ele é dispositivo para falar sobre as guerras, as motivações que as desencadeiam, de como a mídia influência na política e na manipulação das massas, no interesse do mercado que está acima do bem comum, dessa elite que controla as regras do jogo, dessa maioria que sofre com isso e não se percebe manipulada”, comenta o diretor.

Por trás do explícito, estão as engrenagens de poder. “Aqueles soldados não são inimigos de fato, são seres humanos. Alguém fala que são inimigos, e eles lutam entre si. Deveriam lutar com quem manda lutar. O texto fala mais sobre essas construções que acabam escondendo os inimigos que a gente nem sabe quem são”, reflete Márcio.

publicado em 21.05.2015 no jornal O TEMPO . belo horizonte . MG

http://www.otempo.com.br/divers%C3%A3o/magazine/quem-%C3%A9-o-inimigo-de-fato-1.1042205

 

 

Publicado em 21/05/2015 | nenhum comentário

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