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NA COLA DE MARCIO MEIRELLES – parte 1

texto publicado na revista BARRIL #7 . na coluna ENCOSTO

Por Igor de Albuquerque

Apesar de toda a sombra lançada por seus mistérios, Salvador continua sendo uma cidade clara. Aqui, óculos escuros são imprescindíveis para evitar uma velhice precoce. No verão –   leia-se mais da metade do ano –, os seres que enfrentam as tardes e manhãs sob o sol vão apertar o rosto sempre que deixarem para trás espaços protegidos da luz natural. A parte do Passeio Público reservada ao teatro Vila Velha é um pedaço dessa realidade reluzente: paredes brancas, edificações baixas, céu aberto e a baía de Todos-os-Santos ao fundo. Tornando ainda mais eloquente esse festim da claridade, das nove à uma, os alunos da Universidade Livre refletem o dia em suas vestes brancas, exigência do curso. Márcio Meirelles, que criou a   Livre, há muito tempo não usa outra cor: calça, camisa e havaianas brancas. A cueca não cheguei a ver, mas não é difícil imaginar a cor. Eu, inclusive, também pus minhas roupas mais alvas nas vezes em que estive por lá.

A atriz Maria Clara Falcão explica o porquê do branco: “É mais para padronizar mesmo. Escolher uma cor só. Imagina se alguém vem de verde, ou outro tom que destaque, e a pessoa vai fazer um monólogo, por exemplo. Ela acaba se sobressaindo, né?! Tem que ficar todo mundo em igualdade. Mas poderia ser uma outra cor que padronizasse também”. Maria Clara é natural Riachão do Jacuípe. Veio para a capital em 2011 para cursar engenharia civil, mas depois de se formar decidiu trocar o canteiro de obras pelo tablado. “No início, tentei conciliar a engenharia e o teatro, mas não deu muito certo. Eu tava perdendo as oportunidades que a Livre e o Vila oferecem, não tava sendo proveitoso. Aí joguei pra cima”.

A Livre parece mesmo tomar muito tempo, pois Fernanda Veiga Mota, que fez parte da primeira turma formada pelo programa, segue na mesma toada: “Eu acho que toda formação de ator é uma experiência difícil, e a Livre é um programa especial. Ela mexe com o emocional e com o problema do limite. Durante esses três anos foi muito difícil porque eu tive que negociar o tempo inteiro sobre até onde eu estaria disponível para o projeto, porque se você deixar, ele suga todo o tempo que você tem”. No caso de Fernanda, não foi possível conciliar uma residência com a apresentação de “Através do espelho e o que Alice por lá” no início de 2016. A atriz de 30 anos talvez não obtenha o certificado do curso, “pois é como se ela não tivesse apresentado o TCC em uma graduação”, disse Márcio Meirelles andando com passos rápidos na calçada do prédio de Ivete Sangalo.

Além dos ensaios, aulas e demais atividades desenvolvidas pela manhã, à tarde a Universidade Livre tem um calendário intenso de oficinas e cursos abertos ao público. Os alunos podem também trabalhar no próprio Vila Velha para complementar o pagamento da mensalidade de 350 reais. Márcio Meirelles decidiu implantar o sistema de moeda social de modo que as horas trabalhadas na bilheteria, produção, técnica etc. se convertam em abatimentos no fim do mês. Resumindo, não é raro ver alunos que chegam no teatro às nove da manhã e só saem de lá quando o espetáculo em cartaz termina.

Atualmente, os vinte e três estudantes da livre estão se preparando para viver a história mais famosa de Verona. Romeu e Julieta marca, a um só tempo, a estreia de uns e a despedida de outros, pois a encenação da peça será a primeira apresentação dos que entraram este ano na Livre, mas também será a terceira e última dos que ingressaram em 2014. O processo de montagem é complexo e bem dividido, como o próprio texto de Shakespeare. Márcio convidou uma ruma de gente para ajudá-lo no processo. A professora da UFBA especializada em Shakespeare Elizabeth Ramos foi convidada para falar sobre o autor e sobre tradução; Joana Lavallé, da Unirio, deu uma aula sobre o espaço nas artes cênicas e sobre o teatro elisabetano; Sérgio de Carvalho, da Companhia do Latão, colaborou com um curso de uma semana. Mas esses são apenas alguns poucos exemplos. Márcio explica que Universidade Livre não é uma iniciativa de um homem só dando um sorriso maroto: “Até agora são mais de oitenta colaboradores”.

Romeu e Julieta será apresentada ao público em dezembro, mas como a montagem do espetáculo se faz na lógica do work in progress, quem estiver curioso para ver a quantas anda o trabalho pode acompanhar os experimentos do grupo. Assim, os familiares veem como estão gastando seu dinheiro e os amigos dos envolvidos também se divertem.

A manhã de 23 de agosto desenhou poucas nuvens no céu. Era o dia do quarto experimento de Romeu e Julieta e os atores estavam ansiosos para iniciar a caminhada que partiria do passeio público em direção à praça do Campo Grande. Os Montecchios trajavam pijamas e os Capuletos usaram tutus vermelhos e brancos. A ideia era fazer o primeiro ato peça no caos da urbis: as duas famílias se insultariam mutuamente até chegar debaixo do pé do caboclo, onde, por meio de improvisos, recriariam as texturas da briga que abre a tragédia. Havia muita tensão e energia no ar – nada que chegue a surpreender considerando a idade dos atores, mas Márcio deu a recomendação antes do fight começar: “o exercício é ficar em silêncio e ouvir todos os sons da rua”. Então, atravessado o portão do Vila Velha, o grupo se dispersou entre as duas calçadas que ladeiam a Avenida Sete; ofensas e palavrões começaram a voar sobre os carros apressados naquele trecho de velocidade que estanca no sinal vermelho do Hotel da Bahia.

Nem todos os atores participavam da cena propriamente dita, pois alguns alunos assumiram a parte técnica do negócio: uns distribuíam queijo com goiabada –  Romeu e Julieta – espetados num palito de plástico para os transeuntes, outros entregavam flyers com informações sobre o espetáculo. No limite da publicidade e da poesia pândega. Havia ainda uma equipe de audiovisual registrando a ação. O fato mais curioso desse misto de ensaio aberto e performance de rua aconteceu no final do primeiro ato. Márcio Meirelles e seus alunos se reuniram em torno de alguns espectadores e filmaram suas opiniões a respeito do que tinham acabado de ver. Diante das lentes um jovem skatista se materializou: Raphael Albuquerque, quinze anos de idade, o crítico secundarista vestia a farda do colégio Odorico Tavares. “Parece que vocês estão brincando com  a gente. Não tem peso e força. Vocês usaram pouco o corpo. Está banal. Acho que seria bom pensar em algo mais expressionista. Tem que fazer com a mesma raiva que a gente tem quando leva um corno de nossa namorada”. Os olhos decepcionados dos atores e da equipe mal podiam acreditar.

Na volta, performaram mais uma vez o ato. Um ator (de saia e torso nu) chegou a abraçar um cachorro de rua ignorando o risco de ser mordido ou de pegar uma doença. Foi a última coisa a ser feita antes de voltarem para a sala de ensaio. Lá dentro, alguns atores reagiram à crítica do jovem Raphael ridicularizando-o através de uma imitação sarcástica. Para Márcio, porém, a intervenção daquele rapaz teve um outro significado: “Tinha mais teatro naquele menino do que em tudo o que a gente fez hoje”.

http://www.revistabarril.com/copia-edicao-06-2016

Publicado em 04/04/2017 | nenhum comentário

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