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NA COLA DE MARCIO MEIRELLES – parte 2

​publicado na revista BARRIL #10 . coluna E N C O S T O

Por Igor de Albuquerque

SALA DE ENSAIO

O tom de voz de Márcio é estável e macio, soa como se sempre imprimisse uma dose de preguiça aveludada ao dito. Há uma atmosfera de calmaria a seu redor. Ele dizendo “… quando eu fui diretor aqui do TCA…”, na varanda do teatro, não difere muito de quando conta uma piada ou um caso sacana. Nas muitas ocasiões que o acompanhei, somente uma vez vi essa aura de harmonia desaparecer. Era uma manhã de avaliação de experimento. Todos os atores da Universidade Livre deveriam compartilhar suas impressões, opiniões e críticas acerca da última atividade do grupo. Não demorou muito para os jovens atores começarem uma lavagem de roupa suja tensa e acalorada: uma atriz exibiu roupas supostamente retalhadas por uma tesoura invejosa, um outro rapaz reclamou das piadas em relação à sua sexualidade e, no fim, um conflito racial levantou a curva do pathos na sala de ensaio. “Não me chame de branco, não. Não me chame desse nome não, que eu não sou branco”, urrava um ator desesperado em tom de ameaça para uma colega. Foi quando Márcio interveio energicamente: “Cale a sua boca, porra. Aqui você não vai intimidar ninguém”.

CAFÉ DO TCA

“Desde criança eu desenho, crio coisas, escrevo peças de teatro, contos”, contou Márcio Meirelles enquanto bicava seu café coado – ele diz ter enjoado dos expressos. “Tem algumas coisas de outras áreas. Mas a produção maior era de desenho. Daí eu comecei a pintar, fazer arte ambiental, vídeo em super-8. Em 72 eu entrei na faculdade de arquitetura, porque tinha que fazer uma carreira, ter um diploma. Minha família acabou me conduzindo para arquitetura e não para belas artes. O que foi bom”. Ele não chegaria a concluir o curso.

Foi na década de setenta, durante os anos de chumbo da ditadura militar, que Márcio Meirelles entrou para as cênicas. No começo, ele passou por grupos de teatro universitário que encenavam suas ideias e teve, inclusive, textos censurados; também montou peças infantis. Depois disso, passou um período no Rio de Janeiro, onde trabalhou com José Wilker. Em 1976, voltou para Salvador e criou o Avelãz y Avestruz, grupo de teatro cooperativado (todos eram sócios e consorciados), em que pôde começar a dar seu toque autoral às produções. No histórico do grupo estão produções que vão de Goethe (“Fausto”) a Strindberg (“O Pai”). Ao todo foram dezesseis espetáculos apresentados.

Outro episódio definitivo na carreira do diretor foi a sua residência nos Estados Unidos. “Em Nova Iorque eu vi muito teatro americano. Daí eu entendi, caiu a ficha. Esses caras fazem teatro para a cultura deles, para a história deles, e funciona perfeitamente. Mas isso não serve pra gente. A gente tem que inventar um teatro que tenha a ver com nossa história, com nosso sotaque, com nosso jeito de ser. Então voltei com essa ideia de criar um teatro baiano. Me aproximei do Movimento Negro e dos blocos afro. Mergulhei na cultura negra”, relembra Meirelles. O desdobramento desse insight é largamente conhecido: o Bando de Teatro Olodum alcançou reconhecimento de público e crítica através de produções que uniam as ideias de teatro panfletário/pedagógico a textos originais concebidos para o grupo. O curriculum do grupo também é extenso: “Essa é a nossa praia”, “Zumbi”, “Cabaré da Rarrrrrça”, dentre outras produções. Mas foi “Ó Paí Ó” que ganhou o mundo para além do público de teatro; em 2007 a peça foi para os cinemas e também virou série de TV na Globo, tornando-se uma das narrativas soteropolitanas mais proeminentes das últimas décadas.

​Meirelles está meio largado numa cadeira, escora as costas no espaldar e os ombros na parede de mármore do TCA. “Quando fui diretor daqui fiz questão de montar pelo menos um espetáculo por ano, foi diferente de quando estava na Secretaria e me dediquei completamente àquilo. Não montei nada.” – refere-se ao período de 2007 a 2011, em que foi Secretário de Cultura do Estado da Bahia. Sua gestão foi marcada pela distribuição de recursos em diversas linguagens e regiões, resultado de mapeamentos e desenvolvimento de estratégias que visavam capilarizar os incentivos por todo o estado. De acordo com o diretor, muita gente da cena teatral ficou decepcionada com o seu projeto, pois se esperava uma atenção especial para o teatro que acabou não acontecendo. Apesar de avaliar como positiva a sua participação no cargo de secretário, Meirelles diz que não pretende ocupar novamente uma posição que o impeça de trabalhar em suas produções no teatro.

O passado do diretor é marcado por inúmeras realizações e pela presença de muita gente talentosa. Um trabalho digno de nota é “Sonho de uma noite de verão”, de 1992, cuja direção foi dividida com um dos maiores autores da história do cinema, o alemão Werner Herzog. O presente de Márcio é a Universidade Livre, sua escola experimental de formação de atores. Já o futuro é difícil de antever, pois ele diz que quando a escola se estabilizar como instituição sólida talvez comece a fazer outra coisa: “É como o Bando [de teatro Olodum], quando achar o formato eu vou encher o saco”.

SALA PRINCIPAL

Dia da Proclamação da República. No meio do tablado do Teatro Vila Velha, um ator negro de cabelo black power esganiça a voz para dar vida à ama de Julieta. A senhora Capuleto veste uma camiseta folgada – sem sutiã – e saia preta. Julieta entra em cena pela primeira vez. Ato I – cena IV. Sentado numa cadeira à beira-palco, Márcio Meirelles vai anotando impressões em seu MacBook branco. Até o final da manhã o ensaio corrido duraria uma hora e nove minutos; era a primeira metade da tragédia antes do intervalo. Seriam mais quinze dias de ajustes, marcações e rearranjos até a estreia. A montagem, além de envolver uma infinidade de detalhes no cenário, ainda contava com a performance musical de boa parte dos atores tocando bateria, guitarra, baixo, sax e um acordeão de brinquedo. Para se ter uma ideia, o emblemático sonho de Mercúcio com a rainha Mab é recitado no meio de um solo de bateria, pelo próprio baterista.

Sob o comando da Revista Barril, passei o dia da estreia no Vila Velha. Acompanhei os últimos ensaios, tomei bastante café coado e fiquei assuntando pelos corredores. Na virada da tarde pra noite, ainda provei um doce de açaí; mimo enviado pelo pai de uma das alunas que é dono de uma sorveteria em Vilas do Atlântico. O açaí estava delicioso, mas deixou marcas em minha camisa clara. Enquanto tentava me limpar, Márcio Meirelles passou rapidamente em direção ao corredor que leva às portas da sala principal, com um pote de tinta vermelha nas mãos. Nas paredes, haviam colado várias fotos que mostravam os atores de Romeu e Julieta se beijando. “Digam aí uma fala boa da peça?”, perguntou para alguns atores que o circundavam. Como ninguém respondeu, Meirelles foi escrevendo com a ponta rubra de seu pincel sobre uma das imagens: Q NOVA É BOA EM TEMPO COMO ESSE?

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Publicado em 04/04/2017 | nenhum comentário

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