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OS SETE CONTRA TEBAS, DE ÉSQUILO

foto: joão milet meirelles

 

por Marcus Mota

Está em cartaz até o fim do mês de fevereiro no Teatro Vila Velha, em Salvador, uma montagem de Os Sete contra tebas, de Ésquilo, dirigida por Marcio Meirelles. A montagem está ligada ao trabalho de pesquisa e criação realizada pela Universidade Livre do Teatro Vila Velha, projeto que se distingue pela formação de artistas cênicos que enfrentam todas as etapas de criação e produção de espetáculos.

A escolha de uma tragédia grega vem encerrar a primeira turma da Universidade Livre e ao mesmo tempo marca a centésima realização do multipremiado diretor e gestor cultural Márcio Meirelles. E por que encerrar um curso de formação de artistas cênicos com uma tragédia grega?

Falando de tempo, em agosto do ano passado (2015), a convite de Marcio Meirelles, ministrei workshop sobre a dramaturgia musical de Sete contra tebas. Meu trabalho seria um misto de análise textual e consultoria sobre questões relacionadas ao contexto de realização e composição da dramaturgia ateniense, para subsidiar o processo criativo. Em meu trabalho acadêmico sempre tenho em mente a correlação entre dados filológicos e marcas performativas do texto. Afinal de contas, eu estudo esses textos como dramaturgo, enfocando-os como registros de possibilidades de construção cênica que podem ser apropriados e transformados .

Tive o privilégio de trabalhar em uma montagem de Sete com direção do multiartista Hugo Rodas, em 2013, durante o I Festival Internacional de Teatro Antigo, realizado dentro do XIX Congresso da Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos, ocorrido em Brasília.

Essa montagem de 2013 foi preparada no decorrer de uma disciplina de pós-graduação, durante a qual todas as decisões criativas (dramaturgia, canções, interpretação, cenário) foram apreciadas e comentadas por artistas e pesquisadores.

Na época, eu havia apresentado minha tradução de Sete para o Hugo Rodas, que me solicitou um outro texto. Eu, a partir de Sete e de As fenícias, de Eurípides, elaborei um jogo cênico articulado por dois atores fazendo os irmãos Etéocles e Polinices e uma atriz-cantora fazendo os papéis de Esfinge e Jocasta. O jogo estava na tensão entre os eventos míticos reatualizados em uma situação de confronto fatricida. Ao fim, na apresentação, vídeos mostravam os protestos nas ruas durante as manifestações populares de 2013.

Para a montagem de 2016 no Teatro Livre, quantas mudanças… Primeiro, Marcio Meirelles partiu do texto mesmo: sua opção foi enfrentar a complexidade multirreferencial e multimodal da dramaturgia ateniense. Além da enormidade de dados da teia mítica do texto (laços familiares, nomes de lugares, costumes), temos a estranheza do coro, sua rigorosa presença registrada em rubricas internas, métrica e referências em Platão e outros escritores.

Para tanto, durante o workshop, foi percebida a correlação entre funções do metro na peça e sua possibilidade de reinterpretação por meio de ritmos do ritual do Candomblé. Assim, a partir do ouvir, da musicalidade no fóssil-texto de Ésquilo, iniciou-se a construção de horizontes que iriam orientar o processo criativo.

Então, no começo foi a música. Na montagem de 2013, eu ia compondo as músicas a partir dos ensaios, produzindo material sonoro diversificado: elaborei uma abertura orquestral, para marcar um início épico-guerreiro do espetáculo durante a entrada do público. Depois, descambava dessas alturas para uma sonoridade bas-fond, a partir de matrizes de funeral à la New Orleans. Mais à frente, um maxixe eletrônico coloca em cena as imagens de luta, de guerra. Os arranjos eram produzidos digitalmente e eu tocava com a guitarra ao vivo em cima, acompanhado de improvisações de uma cantora lírica.

Já na montagem do Vila Velha, o trabalho com a música, ponto de partida do espetáculo, ficou a cargo do compositor Pedro Filho, sendo a música executada ao vivo com mistura de instrumentos eletrônicos e instrumentos de percussão. Este “batuque eletrônico” é o eixo de condução da encenação: as partes faladas, a movimentação do coro, as danças e os cantos, as projeções de vídeo – tudo é atravessado pelo tour de force da música.

Estive presente para assistir ao espetáculo no dia 22 de janeiro. Interessante foi ver o teatro cheio para um mês de férias. A apresentação de Sete integra um conjunto de espetáculo do Amostrão Vila Verão, que ocupa justamente esse período problemático de pautas culturais, ainda mais em Salvador, com a hegemonia das festas de Carnaval. Assim, em pleno verão, estávamos lá e eu e dezenas de pessoas diante de uma massa de sons, imagens e movimentos, uma dramaturgia audiovisual impactante, no limite quase extremo da percepção.

Pois, a opção de se levar o texto inteiro para a cena se mostrou um desafio e uma provocação que em si mesmos contêm todos seus atrativos e perigos. Inicialmente, por questões técnicas (sonorização, uso de microfones, interpretação), e por questões referenciais mesmo, parte do conteúdo transmitido era difícil de ser acessado. Isso me lembrou a primeira vez que vi uma tragédia grega em sua totalidade sendo representada. Foi em 1995, no Teatro Nacional de Brasília. Tudo era falado em grego moderno. Ninguém entendia o conteúdo do texto, mas a montagem era impactante, pela força de sua audiovisualidade. Agora, no Teatro Vila Velha, acontecia algo semelhante, que colocava diante de si plateias de tempos distantes: a força dessa dramaturgia registrada no texto, para espectadores de ontem e hoje não residia apenas no conteúdo verbal, no sentido das palavras. Foi quando me desliguei de tentar entender o que estava acontecendo que me conectei ao espetáculo. Antes, havia a interferência entre a continuidade dos atos e da cena e os repetidos empenhos em seguir as falas das personagens. Mas, a partir do momento que a assincronia, a defasagem entre a continuidade da cena e meus esforços de entender as palavras iam aumentando, tive de abandonar o barco da linguagem verbal e mergulhar ou me deixar submergir no agitado oceano audiovisual da peça.

Nesse sentido, afirmo que a metodologia de encenação desenvolvida no Teatro Vila Velha se encaminha para uma fronteira entre teatro, vídeo e música, entre a aproximação entre novas tecnologias e interpretação fisicizada.

Há uma personagem na peça que é um antiespectador : Etéocles, o filho de Édipo que comanda Tebas cercada por sete guerreiros, dentre eles, seu irmão Polinices, que vem reclamar o trono usurpado. Etéocles quer silenciar o coro, suas vozes e movimentações. Etéocles não quer que se veja ou se ouça nada além daquilo que ele afirma estar acontecendo. Etéocles nunca canta ou dança na peça: quer apenas a fala, como se bastasse o que ele diz para a cidade ficar em paz.

Durante muito tempo se pensou a dramaturgia ateniense como o reino da fala plena. Aristóteles mesmo, em suas anotações na Poética, patrocinou uma linha de desenvolvimento histórico da tragédia: ela começaria do mais dançado e improvisado para depois irromper na hegemonia da fala. Assim, a história da tragédia, sua evolução, seria a passagem do canto/dança para o discurso, do menos dito, para o mais falado

Nem Aristóteles, nem Etéocles foram capazes de conter o desmesurado vigor daquilo que engloba diversos modos de apreensão e produção de atos e efeitos.

A partir disso, temos consequências estéticas e políticas: Sete contra Tebas explora a imagem de uma cidade sitiada, cercada. Todos os palcos que atualizam este drama encenam um impulso de resistência promovido pelo gestos plurais em sua materialidade e aplicações. O Teatro Vila Velha e os demais teatros e projetos culturais pelo Brasil afora estão sitiados por políticas equivocadas, e o mundo mesmo encontra-se sitiado por unilateralidades. A cidade sitiada da peça abre em imagens e sons de cercos, guerras, destruições, ataques à vida.

Um dos momentos mais significativos da montagem de Sete no Teatro Vila Velha é a projeção das imagens do desastre ambiental em Mariana. Uma das marcas da dramaturgia ateniense é promover um contexto de lamento, de mútua implicação entre os espectadores e a cena. Os gregos tiveram suas desgraças; nós, as nossas.

O reverso da cidade sitiada é a comunidade unida. Enquanto houver o agressor, haverá a resistência, e a tragédia como a arena em que esse confronto se reencena.

[Marcus Mota é dramaturgo e professor de Teatro da UnB, Brasília, DF]

publicado originalmente na revista CAIXA DE PONT[O] #3, outono 2016

http://media.wix.com/ugd/23361d_36da6f7bf1114dccb143ca75d21d6041.pdf

Publicado em 14/08/2016 | nenhum comentário

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