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BARBA AZUL – UMA CONSTRUÇÃO

BARBA AZUL

BARBA AZUL

Texto publicado no programa da peça Barba Azul, encenada em Salvador, com estreia em 19 de maio de 1997

Barba Azul vem sendo gestado há muitos anos. Mas só agora encontrei a matéria prima necessária para construí-Io como poesia e como teatro.

Primeiro era necessário que existisse um estado de espírito meu, como criador. E neste momento estou querendo falar das impossibilidades e das condições para se amar.

Este é o tema básico do meu Barba Azul: o fato de que cada um é um; de que o amor pode muito, tem muitas mágicas, mas não a de transformar duas pessoas em uma; de que um casal – por maior que seja o amor, mais íntima que seja a relação e mais plena a identificação entre os pares – é formado por duas pessoas, e cada uma tem suas portas secretas que não devem ser abertas; de que nós é sempre eu e você e nunca eu e o meu. E esta é a beleza do mundo.

Mas Barba Azul é mais que isso. Os contos, as lendas, os mitos, são construídos de poesia, e a poesia é sempre menor quando se tenta traduzi-Ia. Lemos algumas interpretações do conto, feministas, psicoanalíticas… e sempre me parece que o texto foi mutilado para caber nas explicações, como os pés das irmãs de Cinderela, para caberem no sapato.

Talvez o teatro possa recontar o conto com toda sua grandeza, repoetá-Io. Porque teatro também é construído de poesia, uma poesia não literária. Uma poesia física que desperta a razão através dos sentidos e não os sentidos através da razão.

E é preciso que a razão esteja desperta para que o teatro tenha sua função cumprida.

Então, desta forma o teatro se completa: a alma humana é mexida, é posta em cena, é esmiuçada através da poesia; é revirada de cima a baixo através do prazer e até da dor, mas nunca do sofrimento. Teatro tem a ver com prazer, com delírio, com paixão, com tesão, nunca com martírio, culpa, tortura. Um teatro que exige isso para existir, está errado, deve ser repensado.

Então para fazer Barba Azul era necessário que, além da disposição de criador, eu reencontrasse o prazer de fazer teatro. A paixão.
O prazer do teatro nunca é solitário, não é possível que seja assim. É mais como o prazer de uma orgia, de uma promiscuidade sagrada onde corpos e almas se lambuzam de suor, de delírio e de poesia. De imagens.

O prazer masturbatório está distante do teatro. É sempre necessário o outro. É uma relação que sempre precisa de, no mínimo, dois: o autor e o diretor, o diretor e o ator, o ator e o outro ator, o ator e o público e outras combinações possíveis, mas sempre dois. Como numa relação de amor, o um não cabe, não há mágica possível. E essa é a beleza do teatro.

Para fazer Barba Azul era preciso encontrar parceiros dispostos a embarcar na poesia. Então foi feita uma oficina. Vieram vinte e três. Durante três meses vivemos nessa orgia. Ficamos encharcados de imagens, sensações e reflexões sobre este prazer de se dar em que o ator se exercita diariamente.

No princípio foram os elementos: a respiração, as emoções básicas, o animal, um nome, um caminhar, um gesto, para se construir um personagem: a célula.

E, não sei bem porque, esse Barba Azul me parece só o início de alguma coisa que não sei bem o que é, mas é. E será.

Assim, com Barba Azul, foram construídos também uma sala de espetáculos e um grupo. Tudo que teatro precisa para existir: duas tábuas, dois homens e uma paixão.

capa do programa - criação de JOÃO SILVA da MARIA PUBLICIDADE

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Barba Azul foi feito ao mesmo tempo em que o Teatro Vila Velha passa por uma reforma, transformando-se num novo teatro. E durante o processo de construção do espetáculo, semanalmente descíamos para visitar a obra que então era um grande buraco na terra. Nesse buraco, na terra, construímos as primeiras imagens da peça. Assim – penso poeticamente – Barba Azul está nos alicerces do novo Vila Velha. Cresceram juntos, os ensaios acompanhando a obra.

Depois vieram os desenhos do figurino e a mobilização do grupo para executá-Io. Veio a música de Monclar Valverde, fluindo como sangue entre os órgãos e a coreografia de Cristina Castro como ar purificando tudo. E a força de Chica Carelli. E a luz…

A luz de Jorginho de Carvalho também foi feita num sistema de oficina, por uma equipe de apaixonados. E criaram não só a luz para a peça, mas um sistema de iluminação para transformar uma sala de ensaios numa nova sala de espetáculos.

Aquelas situações criadas foram se colocando nos lugares certos, virando cenas do Barba Azul. As vezes coisas que foram feitas para um personagem, eram estilhaçadas, multiplicadas e recompostas para vinte deles. Textos criados por uns reviviam na boca de outros.

Textos eram mutilados e cicatrizados com outras palavras. Cenas mudas criavam voz, cenas faladas silenciavam, viravam música ou coreografia, ou as duas.

Personagens que se acreditava bonzinhos mostraram-se corruptos e violentos quando se confrontaram com situações onde o dinheiro era a palavra condutora. Personagens pacatos viravam feras com o sangue conduzindo. Assim os instrumentos foram ganhando seu verdadeiro diapasão, as células foram se relacionado, os tecidos foram ganhando textura.

Estruturei então o roteiro do espetáculo, e esses elementos foram se adensando, ganhando forma e função e se encaixando naquele esqueleto literário como órgãos de um corpo vivo.

Uma vez construída a célula – instrumento com o qual o ator trabalha durante todo o processo de criação de um espetáculo – passamos a construir as situações, cenas, os relacionamentos entre os personagens: os tecidos. E palavras surgiram para estrutura-Ios: dinheiro, poder, sexo e sangue.

Antes de se fazer teatro é necessário entender poesia e saber o que se quer. É absolutamente necessário que um ator saiba exatamente o que está fazendo em cima de um palco. É necessário que entenda seu mundo e o transforme em poesia capaz de mexer, de colocar em dúvida o que se acreditava absoluto.

Mas antes disso as questões: para que fazer teatro? O que é um grande ator? E o que é teatro? Essas perguntas foram respondidas com trabalho físico e com poesia. Escrevemos muitos poemas sobre tudo que fazíamos, e esses poemas fazem agora parte do texto do Barba Azul.

marcio meirelles

maio de 1997

Publicado em 19/05/1997 | nenhum comentário

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