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AS MAIS FORTES

yumara rodrigues (senhora y) e nilda spencer (senhora x) - foto: arquivo nós por exemplo -centro de documentação e memória do teatro vila velha
yumara rodrigues (senhora y) e nilda spencer (senhora x) 

 

Em todas as apresentações de A Mais Forte sentei-me no mesmo lugar: uma cadeira colocada no fundo do Cabaré dos Novos, junto ao caixa, ao lado do balcão. Assim, todos os dias, quando Yumara Rodrigues e Nilda Spencer entravam em cena, vindas da platéia para o palco, e quando saiam de cena, percorrendo o mesmo trecho no sentido inverso, passavam pela minha frente sem nunca me olhar. Por mais que eu esperasse por essa olhada, ela nunca acontecia.

Eu via todas as noites aquelas mulheres – Yumara e Nilda, transmudadas em Senhora Y e Senhora X – passarem por mim, nessa ordem na entrada. A primeira de calça e camisa de linho branco e a segunda num conjunto vermelho. Na saída a ordem era a inversa: primeiro o conjunto vermelho da Senhora X deixava o Cabaré, seguida momentos depois pelo traje branco da Senhora Y. Quanta coisa acontecia nesse momento entre a passagem de uma e de outra. E que universo era construído e desfeito entre a entrada e a saída das duas.

No final, Nilda dizia, como a Senhora X, que ia para casa amar seu marido – objeto casual da disputa entre as duas – encerrando a guerra que acabava de ter sido deflagrada sobre o palco e, que, como toda a guerra, terminava sem vencedores nem vencidos, deixando-nos a dúvida de quem seria a mais forte, ou se realmente existia uma mais forte, já que as duas, com marido ou sem marido, estavam sozinhas e derrotadas. Eduardo Torres, então, tocava ao piano, uma composição sua, uma música belíssima, que acompanhava, como nossos olhos, a Senhora X sair, levando consigo a pretensão da vitória e deixando à mesa a Senhora Y com sua probabilidade de vitória recolocar o batom para, em seguida também sair.

Sábado passado foi o último dia do espetáculo. Eu estava sentado no meu lugar habitual. Nilda falou: “Agora vou para casa, para amá-lo”, Eduardo tocou o tema do fim, ao piano, ela desceu o palco e começou seu trajeto para a saída. Então me dei conta de que aquela era a última vez que eu veria aquela saída na minha vida. Que esperaria o olhar que não receberia, que ouviria os aplausos, que estaria emocionado, que veria Yumara passar batom, levantar, se despedir do pianista e da garçonete e também passar por mim para desaparecer no camarim.

Então percebi que aquilo que construímos durante os ensaios e as apresentações se acabaria para sempre, como tudo na vida. Com a diferença de que na vida, geralmente, não nos damos conta de que as coisas estão se acabando para sempre no momento em que se acabam, a não ser quando é a própria vida que termina e não aceitamos.

O inevitável estava para acontecer – o último dia da apresentação de um espetáculo. A senhora X pagou a conta à garçonete enquanto Nilda se preparava para seu desfile final em minha frente. Continuei a esperar o olhar que não aconteceria. Em breve passaria na minha frente uma senhora pequena, num conjunto vermelho, carregada de sacolas cheias de falsos pacotes, vinda de uma batalha e se encaminhando para o nada de um camarim onde ela deixaria de existir, para sempre, sem deixar sequer um cadáver, a possibilidade de um ritual fúnebre, parentes e amigos chorosos, nada. A Senhora X de Nilda Spencer deixaria de existir para sempre dentro de alguns minutos e ela nunca me deu a olhada que esperei, durante toda a temporada.

Nilda então passou, carregando consigo a sua Senhora X, com seu conjunto vermelho, seus falsos pacotes, e sua falsa vitória. Mas Nilda era realmente vitoriosa e grande, como a sua Senhora X gostaria de ser. Plena, inteira como uma rainha, reinando absoluta em sua passagem por minha frente. E o que eu via naquela pequena dama, o que passava, era a generosidade absoluta da entrega de uma atriz que tem se exercitado neste mister há bons quarenta anos. E continua a faze-lo diariamente durante os ensaios, como tive o privilégio de presenciar e compartilhar, com um tesão e um prazer de iniciante, mas com a experiência e a malícia de uma veterana que sabe extrair mais prazer do prazer.

As palavras do texto em sua boca, gozam não só do direito de serem ditas, uma a uma, envoltas na mais perfeita dicção, mas também o deleite de serem bem ditas por uma sensibilidade que as coloca, uma a uma, nos seus devidos lugares, com o peso e o valor precisos. As palavras em sua boca tornam-se assim preciosas.

O personagem, que carregava consigo para largar para sempre guardado nas dobras do conjunto vermelho, foi construído como se constrói uma casa onde vão morar nossos entes mais queridos, com todo o cuidado e o cálculo preciso para que nada desabe e para que, por muito tempo, mesmo depois de ter sido guardado para sempre em fotos, num conjunto vermelho e em notícias de jornal, abrigue as coisas imensas que produziu na nossa emoção intactas.

Chegou então Nilda à escada, virou-se e fitou mais uma vez o cabaré, a assistência e o palco onde estava a Senhora Y, sua rival, que Yumara, sua aliada, ostentava. Depois subiu, com seu conjunto vermelho e suas sacolas, levando a Senhora X embora para nunca mais.

Yumara continuava em silêncio, como durante todo o espetáculo. Tirou da bolsa seu estojo de maquiagem, seu batom e, repintou a boca. Seu silêncio gritava, como durante todo o espetáculo, tudo que as palavras não podem dizer. Era, como sua roupa, uma página em branco onde todos os poemas por escrever tem a possibilidade de vida.

Ela levanta, com sua roupa e seu silêncio brancos, carregando os pedaços da Senhora Y agora recompostos, recolocados em ordem, passa pelo pianista, faz um afago e não diz uma coisa em seu ouvido, se despede da garçonete e vai passar em minha frente.

Então acontece! Ela passa, uma rainha branca num tabuleiro de xadrez onde o xeque mate destruiu todas as peças porque o rei estava morto há muito tempo. Ela passa e com ela toda a grandeza do teatro, da arte de representar papéis, de chorar lágrimas verdadeiras por emoções inventadas, de rir risos loucos para restaurar nossa razão e nossa crença na possibilidade de que a humanidade dê certo, já que existem as atrizes.

E então acontece! Ela passa e, contrariando as minhas expectativas, satisfaz meu desejo pousando delicadamente, por uma fração de segundos, os olhos em mim. Sobe as escadas, vira-se e, como Nilda e diferente dela, contempla seu reino vazio e cheio do ruído dos aplausos de uma platéia eternamente grata. E segue carregando a Senhora Y para nunca mais.

Os aplausos trazem de volta as duas, Yumara e Nilda, despidas de tudo, em seus trajes branco e vermelho, só para, generosamente, nos mostrar que sem seus personagens elas são mais fortes ainda, porque tem muito mais a dar.

marcio meirelles

artigo publicado no jornal A TARDE (salvador/bahia) 01/06/1997

Publicado em 01/06/1997 | nenhum comentário

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