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Recomendo o Sonho

Texto escrito por Marcio Meirelles, em Salvador, em 31 de agosto de 1997, para o jornal Gazeta Mercantil.

 

Recomendo Dom Quixote porque é um clássico. E um clássico, segundo Ítalo Calvino, é “um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer”. E, especialmente esse clássico tem muito a nos dizer neste momento.

Neste fim de século, quando já quase não temos crenças, quando é difícil distinguir de que lado devemos estar, quando ruíram as convicções e estruturas norteadoras de nosso comportamento. Quando é muito difícil distinguir quem são os aliados, quem está contra. Quando já não temos por que lutar, a não ser pelo dia a dia, pelo cotidiano árido, quando morreram os ideais e os mitos não duram mais que quinze minutos. Neste momento Dom Quixote tem muito a nos dizer.

El Ingenioso Hidalgo Don Quijote de La Mancha foi escrito há quase quatrocentos anos por Miguel de Cervantes Saavedra. Espanhol aventureiro, filho de nobres empobrecidos, Cervantes alistou-se como soldado em 1570, para lutar contra os turcos. Ao regressar à Espanha, cinco anos depois, foi raptado por piratas mouros e ficou prisioneiro em Argel por mais cinco anos: sua família não tinha como pagar o alta resgate exigido. Finalmente liberto, engajou-se novamente como soldado e participou de combates na África. Depois de abandonar as armas dedicou-se mais à escrever, levando uma vida difícil apesar do sucesso de seus livros, especialmente Novelas Exemplares e Dom Quixote.

Escrito já no fim de sua vida, Dom Quixote tem muito de Cervantes. Isso, talvez, seja um dos motivos do sucesso do personagem e do livro. Foram escritas com muita paixão e verdade as aventuras e desventuras deste homem que, de tanto ler, “se lhe secou o cérebro” acreditando-se ele próprio personagem dos livros de cavalaria que leu.

Assim, convicto de ser um herói, faz-se cavaleiro andante, a lutar contra vilões, monstros e magos para corrigir o mundo, por amor de Dulcinéia. Vai então, mundo afora encontrando os mais estranhos personagens e vivendo as mais divertidas e desastrosas aventuras. Leva consigo Sancho Pança, seu vizinho, feito escudeiro, que o segue graças à crença de que no fim de todas aquelas aventuras ganharia, como prêmio por sua lealdade, uma ilha para governar.

Dom Quixote é aquele que acredita e convence, pelo menos a uma pessoa, de que o sonho é real e de que as coisas podem não ser exatamente o que são, mas o que queremos que elas sejam. Que o fundamental na vida é ter porque lutar. Mas é muito mais: É um clássico que nunca vai terminar de dizer tudo aquilo que tem para dizer.

Para nós, homens deste fim de século, talvez seja necessário ouvir de Dom Quixote que o sonho é, na verdade, o poderoso engenho que move o mundo. É preciso acreditar.

 

Publicado em 31/08/1997 | nenhum comentário

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