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ENSAIO GERAL

texto de Paulo Alves para o programa de Medeamaterial – encenação de Marcio Meirelles – texto de Heiner Müller, em 1993.

rejane maia - foto: rejane carneiro

A platéia ouve às vezes sem saber

que a cena não é feita só do que se emite do palco.

O palco é grande receptáculo.

Antes e depois.

Não tem fim.

Eurípedes captou lendas e lendas

antes de legendar Medéia.

Medeamaterial veio à luz após um grande ensaio geral – 17 meses de gestação, durante os quais se compôs do muito que vimos e ouvimos dizer.

E do que não vimos ou ouvimos.

Quem sabe possa alguém dizer, lembrando o Rosa, que o espetáculo valeu pelo muito

que deveu nele não caber.

Do ângulo do diretor vê-se pela janela, agora iluminada, a igreja do Rosário dos Pretos. Os sons que chegam da agitada night do Pelô-Maciel-Terreiro não chegam a quebrar a concentração da meia centena de pessoas reunidas em uma ampla sala da antiga Faculdade de Medicina.

JASÃO

… O teatro da minha morte estreou quando eu estava entre as montanhas, no meio dos companheiros mortos, sobre a pedra, e, acima de mim, surgiu o esperado avião.

 Goebbels levanta o dedo. O tecladista pressiona o teclado. Mabaço levanta o dedo. Piau e Buiú entram em ação. Os tambores dobram vigorosos.

GOEBBELS

Não tentamos misturar música eletrônica e Olodum. No espetáculo, as duas coexistem, somando-se.

JASÃO

O resto é lírica.

FERNANDO PEIXOTO

Resta a Müller o espaço para a construção revolucionária de um teatro novo: seus textos são fragmentos, cenas estraçalhadas, diálogos ou monólogos deliberadamente derrisórios e consistem em estímulos para a criação inventiva de uma nova realidade cênica, a única capaz de traduzir, através da transgressão, a complexidade da existência …

MEDÉIA

Ama! Conheces este homem?

GOEBBELS

Existe uma enorme diferença entre arte e vida, e nós temos que debater, no palco, muito do que não podemos debater em outro lugar.

PLATÉIA

O baiano Márcio reviu no Rio Medéia grega reviva por Heiner da Alemanha em inglês mas ouviu em yorubá.

JASAO

Devo falar de mim? Eu quem?

ANTÔNIO RISÉRIO

A mitologia iorubá com sua densidade sensível e seus vínculos terrestres, está bem perto da que se gerou na Grécia e bem longe da que aflorou na Índia. Os deuses gregos não se afastam do corpóreo nem do comércio com os mortais. Também os athanatoi africanos estão sujeitos ao desejo, à cólera, à inveja, ao ciúme.

A religião africana é, regra geral, religião do “entusiasmo”, no sentido original de enthusiasmós, ter o deus dentro de si.

E o imaginário africano fez a travessia atlântica.

Somos filhos de representações mitopoéticas que cultivam o contraste e a complexidade. Como abrir mão dessa riqueza? De modo algum. Como disse um dramaturgo grego, há uma guerra civil em cada coração humano. É dessa guerra que extraímos nossa miséria e nossa grandeza. O resto é barro sem esperança de escultura.

CORO (canta)

Devo falar de mim

Eu quem

FERNANDO PEIXOTO

… Müller devora o próprio teatro, instaurando um novo processo artístico assustador e imprevisível.

Os meninos estão inquietos. Um deles pede a alguém que ajeite algo no tambor, exatamente quando Medéia, rejeitada pela civilização, revolta~se e deseja~se de novo bárbara e selvagem.

VERA

Por favor, me ajudem, um pouco de silêncio. Está tão difícil para mim quanto para vocês.

BANDO

Desculpe Vera.

PLATÉIA

Psiu.

MEDÉIA

Ide com o pai que vos ama. E de modo que ele ignore a mãe, a bárbara, porque vosso caminho ascendente a molesta.

AMA (em Eurípedes)

Agora tudo lhe é hostil, e aborrece-a o que mais ama. É que Jasão, traindo os próprios filhos e Medéia, se aninha em tálamo régio, tendo desposado a filha de Creonte, que reina no país; e Medéia, infeliz e desprezada, clama pelos juramentos …

… Ela é terrível; e, com ela, se se tem que lutar contra o seu ódio, não é difícil a vitória.

NOTÍCIA (das agências internacionais)

Tropa da Guarda Nacional e da polícia fortemente armadas controlavam as ruas de Los Angeles depois de três dias de distúrbios que mataram 44 pessoas e se espalharam por várias cidades dos EUA. Cerca de 1900 pessoas ficaram feridas e mais de 3700 prédios foram destruídos por incêndios.

NOTÍCIA (Veja)

A cidade de Srebrenica passa fome há onze meses, o tempo do cerco, e agora chegou ao fundo poço, com vizinhos de porta se matando para abocanhar a comida enviada de pára-quedas pelos aviões americanos. A situação é tão desesperadora e sombria que, se o roteiro dessas desgraças tivesse sido escrito em Hollywood, exigirse-ia o evento da salvação …

… A guerra na Bósnia não tem espaço para finais felizes. Em doze, meses, o conflito produziu 125 mil mortes, 20 mil mulheres estupradas e uma maré de 1,6 milhão de refugiados.

NELSON FRANCO JOBIM.

Na África, a região do mundo mais assolada pela fome, a guerra e a espoliação, a transação democrática tem sido lenta e violenta. Até quando um continente inteiro estará à mercê da comiseração de outros povos ou dos desmandos de “elites” culpadas?

CAETANO VELOSO

Alguma coisa está fora da ordem, fora da nova ordem mundial

CORO

Lago em Straussberg

Está árvore não vai crescer por cima de mim

Sim, sim, sim, sim

Cadáveres de peixes

Caixas de biscoito

Monte de excremento

Jontex

Belmonte ( … )

( … ) Os mortos não olham pela janela

Não tamborilam nas privadas

É isso que eles são

terra cagada pelos sobreviventes

Todo elenco se movimenta sem cessar.

CORO

Margem abandonada.

MARCIO MEIRELLES

A tragégia de Medéia conta a tragédia do povo de Medéia, os conflitos da colonização.

OLGA RINNE

O nome Medéia toca, em nossa cultura, em áreas repletas dos mais profundos tabus. E, em nós também, estas áreas estão enraizadas em tabus: a raiva, a ira, a oposição, o poder, a violência e a vingança não cabem em nossa imagem de feminilidade.

MEDÉIA

O que pode ser meu, tua escrava?

Tudo em mim, teu instrumento.

Tudo de mim.

Por ti eu matei e gerei

Eu, tua cadela

tua puta, eu

Eu, degrau da escada da tua glória.

OLGA RINNE

A figura ambivalente de Medéia é o símbolo de um período de transição do matriarcado para o patriarcado.

HEINER MÜLLER

O objeto da arte é a insuportabilidade do ser

PETER RIGA

Limpeza étnica, estupro em massa e genocídio não são novidade. São tão antigos quanto a história escrita e tão modernos quanto a Irlanda do Norte, os índios americanos e a Bósnia. Nossa consciência a respeito desses crimes aumentou nos últimos 70 anos, ao ponto, de hoje os reconhecermos como crimes de guerra e atrocidades, pelos quais devemos responsabilidar indivíduos específicos diante de toda a comunidade internacional. Isso representa um grande progresso.

FERNANDO PEIXOTO

Müller mergulha de forma implacável no campo da ética e do comportamento do indivíduo inserido no contraditório processo social transformador.

EXPERT

Heiner Müller é um amante de catástrofes.

MAIAKÓVSKY

Escutai, camaradas futuros.

O agitador, o cáustico caudilho.

O extintor dos opúsculos líricos

Eu vos falo como um vivo aos vivos.

( … )

Meu verso, com labor,

Rompe a mole dos anos,

E assoma a olho nu,

Palpável, bruto

Como a nossos dias

Chega o aqueduto

levantado por escravos romanos.

ARNALDO JABOR

O arrastão é “um horror”, do ponto de vista da zona sul. Do ponto de vista dos “funk-trombadinhas” é uma grande farra mesclada com a guerra ( … ) É possível que o espontaneísmo porralouca dos pivetes, essa combustão de jovens pobres, obrigue o “Poder” a olhar seu próprio “nada” no espelho.

CAETANO e GIL

Quando você for convidado pra subir

no adro da Fundação Casa de Jorge Amado

para ver do alto a fila de soldados

quase todos pretos dando porrada na nuca

de malandros pretos e ladrões mulatos

e outros quase brancos tratados como pretos

só para mostrar aos outros quase pretos

que são quase todos pretos e aos quase brancos

pobres como pretos como é que pretos pobres

e mulatos e quase brancos quase pretos de tão pobres

são tratados e não importa se olhos

do mundo inteiro possam estar por um momento

voltados para o largo onde os escravos eram castigados

e hoje um batuque um batuque com a pureza

de meninos uniformizados de escola secundária

em dia de parada e a grandeza épica

de um povo em formação nos atrai nos deslumbra

e estimula não importa nada nem o traço do

sobrado nem a lente do Fantástico nem o disco

de Paul Simon ninguém ninguém é cidadão

se você for ver a festa do Pelô e se você não for

Pense no Haiti

Reze pelo Haiti

O Haiti é aqui

O Haiti não é aqui

ARNALDO JABOR

Os meninos de rua e os PMs assassinos vivem no mundo real da tragédia. Nós vivemos no mundo “moral”. Lá, no mundo do crime, a vida acontece. Aqui no mundo do jornal, da ideologia, da religião, da interpretação, as coisas doem. Nossa dor não adianta nada contra o mal real.

CAETANO e GIL

E na TV se você ver um deputado em pânico mal

dissimulado diante de qualquer

mas qualquer mesmo

qualquer qualquer plano de educação que pareça

fácil que parece fácil e rápido e vá representar

uma ameaça de democratização do ensino de primeiro grau e se esse mesmo deputado defender a adoção da pena capital e o venerável cardeal consegue ver tanto espírito no feto e nenhum no marginal e se ao furar o sinal o velho sinal vermelho habitual notar um homem mijando na esquina da rua sobre um saco brilhante de lixo do Leblon e quando ouvir o silêncio sorridente de São Paulo diante da chacina de cento e onze presos indefesos mas presos são quase todos pretos ou quase brancos quase pretos de tão pobres e pobres como são pobres e todos sabem como se tratam os pretos e quando você for dar uma volta no Caribe quando for trepar sem camisinha e apresentar sua participação inteligente no bloqueio a Cuba

Pense no Haiti

Reze pelo Haiti

O Haiti é aqui

O Haiti não é aqui.

JASÃO

OS negros mortos, cravados como estacas no atoleiro nos uniformes de seus inimigos.

Do you remember?

Minutos depois os tambores dão os repiques finais. A cena se desarma e todos do elenco começam a falar ao mesmo tempo, na desconcentração de fim de exercício. Mas, o diretor avisa que o ensaio não acabou.

MARCIO MEIRELLES

Vamos repassar a outra opção de final. Pergunta baixo à pessoa do lado: Qual das duas opções você prefere?

PLATÉIA

Não tem fim

Publicado em 22/02/2012 | nenhum comentário

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