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OS 20 ANOS DO CABARÉ

CORREIO DA BAHIA:

As questões levantadas em Cabaré da Raça continuam atuais, mesmo após 20 anos. Em sua avaliação, isso é bom ou ruim? Por quê?

MARCIO MEIRELLES:

As questões levantadas continuam atuais. O modo como o Brasil e o mundo tem reagido a elas é q tem mudado. Mtas coisas aconteceram, o sistema de cotas nas universidades deu os resultados esperados com mais negros ocupando lugares onde antes n estavam, repensando e reescrevendo sua história, registrando suas inquietações, redefinido sua construção identitária, influenciando a academia e a sociedade através de discursos próprios, fazendo pesquisas e levantando dados antes camuflados. Ocuparam o seu “lugar de fala”. O brasil teve um governo com um projeto político q mudou a face econômica e política do país e efetivamente promoveu uma inclusão social e racial, ainda q n tanto qto precisamos e desejamos. Depois tivemos um golpe. Ameaças de retrocesso e ações efetivas q jogam por terra mtas conquistas da sociedade. As igrejas evangélicas se misturam c o poder secular, numa promiscuidade de poderes perigosa, q aponta p um Estado fundamentalista. O q significa o outro lado da moeda. A terrível tempestade depois dos tempos luminosos. E n só no Brasil. O mundo tb sofreu mtas transformações: o onze de setembro, Obama, Trump, o racismo e a intolerância religiosa, cultural e racial. As mulheres conquistam seu espaço a cada dia e continuam sendo vitimas de crimes misóginos e machistas. A comunidade LGBT se organiza politicamente e tem em troca cada vez mais agressões…. estamos vivendo um momento mto difícil. Como isso tudo passa pelos atores, por mim, Zebrinha, Jarbas, Chica, pelo Teatro Vila Velha e sobe ao palco num espetáculo q foi criado há 20 anos, qdo mtas dessas coisas ainda n tinham acontecido? Mas o racismo é imutável… continua atuando pq é um dos sintomas do capitalismo, da sociedade frenética de consumo e competição. Destruir o outro, o mais fragilizado pela história, é um ponto. Então a consciência da comunidade negra é manipulada pela crença evangélica por um lado, o lado da fé e passam a demonizar suas heranças culturais. E por outro, o lado da emoção, pela mídia – q funde realidade e ficção numa dramaturgia magistral, digna de todos os teóricos fascistas q criaram o mito da raça pura germânica ou o esplendor do american way of life babarem de inveja. E essa manipulação nos traz de volta uma frase de Paulo Freire: “Qdo a educação n é libertadora, o sonho do oprimido é ser o opressor”. Então recebemos pelo peito uma reforma do ensino médio q nos leva exatamente para esse lugar de n libertação.

CB:

Em 20 anos, muita coisa mudou em relação ao debate sobre o racismo e esse debate se ampliou muito. Se fosse montar Cabaré, hoje, acrescentaria um tipo novo? Ou essa galeria de personagens dá conta do que se pretende falar?

MM:

Realmente as mudanças foram muitas nestes 20 anos. Mta coisa foi alterada no texto. Especialmente no bloco q fala sobre as relações da mídia publicidade e dramaturgia, especialmente na televisão e cinema. Nisto realmente houve um grande avanço. Por exemplo, os atores do Bando protagonizaram as versões para cinema e TV de nossa Ó Paí, ó! e Lázaro Ramos, que coincidentemente fazia o discurso sobre isso na primeira montagem, se tornou um dos atores mais influentes do Brasil.

A peça dá conta do q uma peça de teatro pode dar: mover, comover, mexer nas consciências, fazer refletir e principalmente lembrar as pessoas do q viram e ouviram no teatro. Mtas pessoas me dizem: lembrei de sua peça, aconteceu isso ou aquilo, como no teatro. Ou já ouvi: rapaz, descobri q sempre fui racista, minha família é racista e n sabia… tenho q rever muitas coisas. Isso me deixa feliz.

Por outro lado, gostaria de modificar a peça incluir outras coisas… mas é mto difícil. A peça tem uma estrutura mto fechada dramaturgicamente. Mexer em alguma coisa vai acabar levando a modificar muita coisa. Quase q fazer uma outra peça… podemos até fazer. Mas vamos deixar Cabaré como ela é.

CB:

O que, ao longo desses 20 anos, foi se modificando na peça e o que se manteve em sua essência?

MM:

Algumas pequenas coisas foram alteradas. Principalmente o bloco da mídia, como já falei, e aquelas cenas ou personagens q passaram a ser feitas por outros atores, q substituíram os q os faziam na primeira montagem ou nas subsequentes, substituindo os primeiros. Teve personagem inicialmente representada por uma atriz q já foi feita por um ator, o q nos obrigou a alterações q levassem em conta o gênero etc… Mas nada substancial. Em sua essência Cabaré da Rrrrraça (com 5 Rs, sugerindo um rugido) se mantém um espetáculo “didático, panfletário e interativo”, montado a partir das estruturas dramatúrgicas dos talking shows, desfiles e peças de cabaré ou de revista.

CB:

Estão preparando alguma novidade para essa temporada comemorativa de 20 anos? Cabaré trará algo de novo?

MM:

Basicamente o figurino q sempre muda. Com o apoio de designers de moda baianos. Faz um tempo q resolvemos nos associar a este movimento importante da economia da cultura na Bahia: a moda e seus fazedores, especialmente os negros, q tem proposto muitas viradas políticas no costume de vestir. Esses artistas empresários têm apoiado as várias versões do figurino: o branco, o preto, o vermelho e esse agora.

CB:

Para você, o que explica a força e a vitalidade de Cabaré da Raça, já que é muito difícil manter um espetáculo tanto tempo em cartaz, principalmente sem patrocínio?

MM:

Nosso principal patrocinador tem sido o público, q mostra sua aprovação em seu investimento na bilheteria. A força e a vitalidade de Cabaré estão em sua forma e conteúdo. Criamos um debate bem humorado sobre um assunto mto duro pq teatro pega pela emoção p entrar na razão e desestabilizar verdades consolidadas por um grupo social ou por uma época. Teatro tem um modo próprio de tocar “a consciência do rei”, como dizia Hamlet. E é preciso q faça isso. Essa é a força de Cabaré: tocar a consciência da plateia através do encantamento. E isso é gerado pela movimentação criada por Zebrinha, pela música de Jarbas Bittencourt, e muito pela qualidade do elenco: atores incríveis, “da nobreza negra do Brasil” – no dizer de Zé Celso Martinez Correia.

CB:

Em sua avaliação, qual é a importância desse espetáculo?

MM:

Precisávamos de uma virada. Estávamos num momento de crise, questionando mtas coisas – nossas relações conosco, c o Olodum, c o Vila, c o q fazíamos, c o dinheiro, c o fato de fazermos sem ganhar dinheiro, minha direção, o formato gerencial e vários assuntos. Foi mto bom, passamos em torno de seis meses nisso. Mas um belo dia Jorge Washington disse: “pra mim chega. Quero fazer teatro. Eu tinha a idéia de montar esse Cabaré, já c o título e tudo, por q tínhamos inaugurado o Cabaré dos Novos, no Vila, e precisávamos de um espetáculo no formato daquele espaço; pq tinha surgido a revista Raça, indicando q o Brasil tinha um grande público consumidor negro q queria se ver, queria ter referências; pq eu queria experimentar outro método de criação de espetáculos e de dramaturgia. Então lancei a idéia, mas n tínhamos recursos financeiros e a maioria topou continuar investindo em receber da bilheteria. E fizemos.

Esteticamente houve uma mudança radical. A partir da ideia de construir personagens q estariam na revista Raça, a paginação então de nosso visual mudou bastante c produção de moda, lentes de contato azuis, perucas, maquiagem… a música de Jarbas perseguia os ritmos da moda e os arranjos comerciais das bandas q produzem sucessos instantâneos. Zebrinha coreografou um desfile de modas cheio de estilo. Nossa perspectiva de palco deu uma guinada.

Mas mais q tudo a importância foi o debate gerado a partir da decisão de cobrar meia entrada para negros. Propus ao grupo q fizéssemos isso pq soube q apenas 1% da plateia do teatro baiano era ocupada por negros. Era uma forma de incentivar os negros a irem ao teatro, era uma forma de provocar o público a se assumir negro pq era o qto bastava p pagar a meia entrada, estava no âmbito das discussões sobre políticas afirmativas. E realmente, a partir daí a plateia do espetáculo era pelo menos 60% de negros em média. E essa plateia continuou fidelizada ao grupo e ao vila.

Promovemos debates sobre a questão. Fizemos nosso papel.

CB:

Por fim: qual é a sua idade?

MM:

63 anos

ENTREVISTA PARA O CORREIO DA BAHIA . 1o de agosto de 2017

Publicado em 05/05/2018 | nenhum comentário

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