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Caetano Veloso critica gabarito

Entrevista com Caetano Veloso, publicada pelo jornal A Tarde à jornalista Mary Weinstein e replicada pelo portal PSDB Bahia, em 24 de fevereiro de 2008.

 

Compositor de músicas que falam de Salvador e de cidades brasileiras e de outros países, o santoamarense Caetano Veloso tem um pensamento formado sobre elas. E é capaz de ficar horas dizendo nomes de ruas por onde passava e descrevendo costumes que se tinham e ele observava.

Nesta entrevista exclusiva à jornalista MARY WEINSTEIN, Caetano, que há uns 25 anos defendeu a Lagoa do Abaeté contra a retirada de caminhões de areia de sua borda, volta a falar sobre areia, só que a da praia, porque ficou indignado com as barracas que se construíram na orla marítima da capital. Falando de Salvador, onde religiosamente passa os verões, indo a shows, peças de teatro e a bares e restaurantes, lembra de coisas do seu dia-a-dia do passado, como as caminhadas que fazia entre a Graça e Nazaré, e da beleza que via no Pelourinho, mesmo degradado. Ele ia lá só para olhar o casario e o traçado das ruas. Caetano gosta do patrimônio arquitetônico das cidades e acha que ele deve ser preservado.

O autor de Trilhos Urbanos e Podres Poderes discorre sobre o referencial arquitetônico de outros países. Contou sobre o Carnaval deste ano e os de quando ia ao Clube Fantoches.

Explicou sobre o preconceito que ele acha que existe contra a Axé Music e falou sobre a situação social e política do Brasil. Ele topou falar basicamente sobre cidade e suas culturas.

A TARDE – Quais são suas impressões sobre Salvador?
CAETANO VELOSO | Ao longo de toda a minha vida, eu vi muitos problemas em Salvador. Mas isso é um lugar comum no brasileiro de qualquer lugar (risos). O importante é que, apesar de tudo, algumas coisas sólidas das características definidoras do lugar têm conseguido sobreviver, e algumas se desenvolver. Eu sempre morei em Nazaré. Primeiro no Tororó, que é um sub-bairro de Nazaré, depois no Boulevard Suíço e depois no fim de linha (Caetano explicou direitinho onde e disse que via aquelas meninas” que eram uma da cintura pra baixo e duas da cintura pra cima”, as xifópagas que passeavam no jardim do Hospital Santa Isabel). Eu sempre vinha andando da Graça para Nazaré e passava pelo Pelourinho. Salvador tinha um lado um tanto triste. É o que Stefan Zweig diz no livro sobre o Brasil.

Que Salvador parecia uma viúva triste mas altiva. Eu ficava sentado onde hoje é a Fundação Casa de Jorge Amado pra olhar aquela formação de arquitetura. Eu achava aquilo bonito, e ficava com pena, que ia acabar. Era bonito, mas eu era (considerado) um “freak” por achar aquele lugar bonito e ir lá, entendeu?

AT – Naquela época, o Pelourinho estava acabado, mesmo. Foi restaurado e você continua um freqüentador.
Me deu vontade de ficar aqui mais tempo e toda segunda-feira ir à Cantina da Lua. É muito bonito, você sai do estacionamento e anda por umas ruas de onde você vê uns prédios antigos lindos. Aquilo pegou.

Porque podia não pegar porque foi tudo injetado, tudo feito propositadamente. Mas essas coisas quando têm lastro, elas vingam.
Eu me lembro que o primeiro a fazer uma coisa assim foi um prefeito por quem eu fiz campanha no resto do país e no próprio lugar onde ele atuava, que era o Jaime Lerner, em Curitiba. Tomei até vaias porque ele tinha sido prefeito biônico.

Vaias dos estudantes de esquerda.

Mas o fato é que ele deu um exemplo. E em Curitiba não tinha quase nada. Se fosse feito algo semelhante em cidades como Salvador, São Luís, Recife, seria ótimo.

E veio a ser. São Luís hoje é a cidade mais bonita do Brasil. Quando Antônio Carlos Magalhães e Sarney foram se tornando respectivamente na Bahia e no Maranhão lideranças políticas – aliás, demasiadamente abrangentes –, eles não tinham em mente restaurar a parte antiga das cidades. Porque naquela época não havia essa cultura de querer restaurar.

AT – O Pelourinho era um lugar estigmatizado, deixado pra lá.
É. O Brasil vinha daquele movimento que chegou na Bahia de afrancesar as cidades para esconder, com vergonha, a tradição arquitetônica portuguesa, no começo do século XX. O impulso ainda era esse. Para se começar a se cultivar a beleza da arquitetura portuguesa, demorou muito. E essas lideranças apareceram na Bahia e no Maranhão antes que essas mudanças ocorressem. Se a mudança não ocorresse, eles não teriam se voltado para isso. Isso aqui, você fala Antônio Carlos Magalhães.
Não foi ele que fez (a restauração).

Foi o gosto do povo brasileiro que fez, foi a necessidade, a modernização da mente dos baianos e dos brasileiros em geral, que levou essas lideranças a terem que fazer essas coisas, porque eles estiveram ou estão visceralmente ligados aos movimentos dessa sociedade, e se tornaram quase monarcas dessas regiões. Isso que eu estou falando é complicado. É uma atitude relativa ao gosto, que não poderia ter sido tomada se o gosto da coletividade não tivesse mudado tão grandemente quanto mudou. As coisas são assim. Na época em que Imbassahy era prefeito, se propunha fazer uns avanços sobre a praia.

AT – Lembra que lhe mandei um e-mail sobre isso?
Sim e eu lhe respondi e você usou (em matérias). Essas coisas são pressões de grupos ou de poder.

Todo governo é assim. Eu sou contra, acho que o Porto da Barra é uma jóia. Quem é o responsável pela limpeza do Porto da Barra? Nunca vi o Porto tão sujo. No período de Imbassahy tinham várias coisas que você percebia que eram implementadas. Agora, eu acho que está confuso. Não é possível que tenham construído essas casas em cima da areia da praia para serem permanentes. Porque isso é como construir uma favela. E ocupar parte da areia. O movimento deveria ser em sentido inverso. Devia ser o de desencorajar o que quer que seja de permanente sobre as areias das praias. O que havia na praia – e era bonito – eram as casas dos pescadores quando havia puxada de rede e tudo o mais. Mas isso foi acabado pelo Antônio Carlos Magalhães, na época da ditadura.

E eu protestei contra isso. Mas as barracas de vender bebida e não sei quê, na praia, não podem ser uma coisa que fique ali. Acho errado. Eu sou contra até aquele lugar que os guarda-sóis ficam, fechados, durante a noite. Parece um cemitério. Areia da praia é areia da praia. No Rio tem muito mais gente, têm que vender muito mais bebida e, no entanto, cada um chega, põe sua barraca provisória de manhã e retira às cinco horas da tarde. E não fica nada, a praia fica limpa.

AT – Esse negócio das barracas poderia ter sido evitado se o Patrimônio da União tivesse usado o seu poder de polícia para impedir a colocação do primeiro tijolo.
Mas eu estou 100% com você. Deveria ter sido simples assim. Os poderes deveriam ter sido aplicados dessa maneira. É evidente.

AT – O que você diz sobre o aumento dos gabaritos da orla?
Eu li no jornal que havia uma liberação do gabarito da orla, sem sequer as restrições que havia num outro projeto, de distância entre os prédios. Eu fiquei apavorado porque acho que tem-se que ter um projeto muito claro para a orla de Salvador, porque o desenvolvimento é inevitável. Então, liberação de gabarito é a pior notícia que poderia chegar aos meus ouvidos.
Porque já começa com um negócio de vale tudo, que é justamente o contrário do que deve acontecer.

Deve haver o planejamento mais cuidadoso possível, e não liberações que facilitem construções de qualquer maneira. No Rio, em Ipanema e Leblon, você não podia construir mais que quatro andares. Mas sempre aparece um prefeito que, por causa de dinheiro, abre uma exceção pra fulano e aí, primeiro para os hotéis, mas só hotel, e aí pronto (em ritmo de rap). Mas aí, como abriu pra hotel, aí abre pra um sujeito que dá um dinheiro pro prefeito.

AT -Aqui são 18 andares para hotéis. E na Cidade Baixa também houve ampliação de gabarito.
Junto à praia? Acho que isso deveria ser melhor pensado e achando os caminhos viáveis de implementar restrições. É parte de uma conscientização do que é o tratamento urbano. A prova de que os brasileiros não tinham isso em mente é a maneira caótica como as cidades brasileiras cresceram todas.

E todas estão parecidas. São Paulo é o exemplo máximo e é o modelo que foi seguido por todas as cidades. Aquele trecho do Comércio pediria um tratamento como Recife velho e Pelourinho. No mínimo. A essa altura, possivelmente, melhor, porque já se sabe mais coisa. Mas eu vou dizer uma coisa que eu acho que, de certa forma, resume tudo isso. Que o Brasil, como todos os países da América Latina, que têm relíquias arquitetônicas, coisas que os Estados Unidos não têm, deviam aprender com os países europeus, porque nesse aspecto, nós parecemos com os países europeus. E a forma americana não nos serve. Americano faz uma igreja de madeira pra derrubar depois. Você viaja no Peru, no México, no Brasil, na Colômbia, é lindo. Nos Estados Unidos, o que tem de bonito foi construído nos anos 20, 30, 40, 50. Aqui deveria ser pensado como Paris, Roma, Praga, Atenas. Mas já há um pouco desse pensamento. Como eu falei, a recuperação do Pelourinho, São Luís, Recife. Porque a própria coisa se impõe, apesar de não se pensar dessa maneira e se deixar o crescimento caótico continuar. E agora é preciso que a gente não permita que apesar disso se destrua tudo.
Eu acho que há coisas que têm que ser defendidas pelo poder público e que não podem só ficar entregues aos interesses econômicos.

AT – Vamos falar de Carnaval. O “deixa a gente sem graça no salão”, significa que você não ia para o salão?
Eu ia pra festa de salão (risos). Porque o Carnaval antigamente era de dia. E à noite tinham os bailes.

O pessoal, assim, classe média ia pra o Iate, a Associação (Atlética) e pra o Baiano (de Tênis). Uma vez eu fui pra o Iate, já quando eu estava namorando com Dedé, porque Dedé era dessa área, gente mais rica, e era sócia. Mas antes, todo Carnaval, eu ia pra os bailes do Fantoches. Sabe o Fantoches? Era o meu baile de Carnaval, todo ano eu ia. Porque de noite não tinha nada. Acabava tudo. Começou as pessoas a saírem mais tarde da rua nos anos 70 em diante.

AT – O Fantoches é outro lugar que deveria ser preservado. Mas não vamos voltar a isso de novo.
É, devia ser preservado

AT – Você ia mesmo atrás do trio elétrico?
Sim. E vou. Esse ano eu fui com Zeca, meu filho, e os amigos dele atrás dos mascarados. E eu ia de novo, mas segunda-feira, eu me contundi. No ano passado, eu fui atrás do Carlinhos Brown, de lá da Barra até fechar em Ondina. Esse ano, ainda andei atrás do Fat Boy Slim. Depois eles me chamaram pra subir no caminhão. O Brown eu me mostrei pra ele só no final. Mas ele fica no chão, eu fiquei no chão com ele, mas nem me mostrei. Eu fiquei atrás mesmo. É, eu gosto muito. É igual como quando eu era novo e eu adoro. Eu fico olhando muito, quando o Gil tinha um camarote no Oceania, dava pra ver muito a rua. Dos camarotes de Gil e Daniela hoje dá pra ver pouco porque a rua é estreita. Você tem que ficar na beirada olhando. E mesmo assim, eu olho um bocado. E vejo como o essencial ainda está ali. A maioria das pessoas fica na rua brincando atrás do trio que quer. E do bloco que quer.

AT – Você acha que sem a sua música Atrás do Trio Elétrico, os trios teriam vingado, já que existia muito preconceito?
Mas ainda tem preconceito. Muito dessa reação contra a Axé Music é o mesmo velho preconceito.
Eu sou amigo do Márcio Meirelles, acho um sujeito doce, adoro Ó Pai Ó, o trabalho do Bando de Teatro Olodum, mas sou radicalmente contra a opinião dele sobre a Axé Music. Como secretário (de Cultura), ele disse que o Carnaval fica todo com a AxéMusic. Até esse apelido, nem delimita bem o que é. Isso foi feito por um crítico de rock, que odeia Carnaval em geral, que quer ser americano ou inglês, que já acha chato ser baiano, quanto mais brasileiro.

AT – Sobre a situação brasileira, o que você vê?
O Mangabeira Unger (professor de Direito de Harvard (EUA), agora ministro) tem um pensamento reformista radical que é baseado em inteligentíssimos estudos políticos que ele vem fazendo ao longo da vida e que ele dedica a tentar resolver o problema do Brasil e que o Brasil não pode jogar fora.

E ele me interessa porque é o único projeto que você pode chamar como nitidamente de esquerda e que não é uma perdição. Porque esse negócio de virar o jogo para o lado da distribuição de renda e para a justiça social é um negócio grande pra o Brasil fazer, então tem que ser feito. Isso não é um chavão e pode ser repetido quantas vezes forem necessárias.

 

Publicado em 24/02/2008 | nenhum comentário

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